1º Festival de Cinema de Lajeado reúne ótimos filmes em curta-metragem
Por Danilo Fantinel
O 1º Festival de Cinema de Lajeado, realizado entre 30 de março e 1º de abril de 2017, foi marcado por excelente organização e curadoria atenta. Dos cerca de 300 inscritos, 55 curtas-metragens foram selecionados para integrar a programação. Animações, documentários, filmes ficcionais e experimentais surgiram na tela do Teatro da Univates projetando sobre a audiência a polifônica cultura brasileira.
A maior parte dos curtas exibiu bom uso dos recursos audiovisuais. Naturalmente, alguns se destacaram por suas potencialidades artísticas, narrativas, discursivas ou técnicas. Porém, acima de tudo há entre eles idéias criativas que se resolveram em ótimos filmes. Este relato retoma alguns dos títulos mais marcantes.
ANIMAÇÃO
O projeto do meu pai, de Rosária Moreira
Vencedor do prêmio indicado pelo júri da crítica, O projeto do meu pai, de Rosária Moreira (ES), é uma sensível, sensata e bem-humorada análise do relacionamento entre a cineasta e seu pai. Sonhador e inconsistente, afastado da família devido a uma relação amorosa fora do casamento, o homem é analisado pela diretora do curta em uma narrativa que se estende de sua infância até a vida adulta. Neste percurso de crescimento, o traço infantil que ilustra o início do filme evolui para o desenho mais arrojado que caracteriza seu final. Apenas a figura paterna se mantém tão primária quanto um boneco de palito, apontando para a estagnação do homem em um processo evolutivo falho. Preso a um mundo de ilusões quase palpáveis e desejos totalmente inalcançáveis, o progenitor provoca empatia. Porém, seu contexto é simplório, alquebrado, desanimador. Com um texto cerebral tonificado pelo afeto e pela ironia, Rosária apresenta recursos visuais aparentemente simples para dar força a um pequeno e belo tratado sobre a dimensão parental.
Vento, de Betânia Furtado
Em um conto de formação tão singelo quanto pode ser a passagem pela primeira infância, Vento, de Betânia Furtado expõe ao público o processo de descoberta de um garoto em seu mundo litorâneo. Na vastidão da praia, o menino encontra uma garrafa contendo uma carta, porém essa message in a bottle é incompreensível. Nem ele nem seus familiares sabem ler. O desejo pelo conhecimento o leva até o velho do farol, bem adiante, lá no pontal. É junto à imagem arquetípica do velho sábio encastelado em sua torre de luz e saber que o protagonista busca sua própria ascensão. A transcendência se dá pelo contato com a leitura. Compreendendo o código escrito, o garoto descobre a possibilidade de um mundo muito maior que sua própria aldeia praiana. Lendo a carta, entende que em algum outro lugar uma menina muito parecida com ele busca descobrir o que há além-mar. Para ambos, a melhor saída é assumir a proa da palavra. Tudo é simbolismo, força e afeto na obra de Betânia, belamente ilustrada por Alemão Guazzelli. Integrante do júri oficial, a cineasta exibiu o curta fora de competição.
Entre os concorrentes, também chamou atenção Salu e o cavalo marinho, de Cecília da Fonte (PE), sobre a vida do Mestre Salustiano, ícone entre grupos de dança e música conhecidos exatamente como Cavalo Marinho. Já em Vida de boneco, Flávio Gomes de Oliveira (GO) transforma em comédia as tentativas do protagonista para apaziguar a solidão. Seu personagem cria bonecos que lhe fazem companhia e com eles filma curtas em stop motion. Assim, Flávio brinca com a metalinguagem em um pequeno elogio ao ato de fazer cinema.
FICÇÃO
Boa noite, Charles, de Marcos e Eduardo Carvalho
Melhor filme do festival indicado tanto pela crítica quanto pelo júri oficial, Boa noite, Charles, dos gêmeos Marcos e Eduardo Carvalho (RJ) é uma experiência cinematográfica bastante rica, capaz de transitar entre gêneros e formatos com uma facilidade pouco usual. Originalmente uma animação de terror expressionista em stop motion, o curta se transforma gradativamente em documentário live action para registrar as dificuldades da produção cinematográfica com baixo orçamento e pouca experiência. Convulsionado por originalidade narrativa, humor autêntico e pela fúria oriunda de um processo de produção que se estendeu por anos erráticos, Boa noite, Charles não se perde nos caminhos simultâneos que trilha. Na verdade, seus percursos concomitantes levam à convergência fílmica. A trama de terror, por exemplo, segue em andamento em meio ao caos do set de filmagens registrado em doc. O set, diga-se, é o quarto dos irmãos onde foi instalada a maquete cenográfica que reproduz este mesmo ambiente – espaço de ação do próprio stop motion que será arrasado durante as filmagens. Se o terror domina o espaço em frente e atrás das câmeras, por que não fazer disso um filme? Nesta estreia bombástica, os irmãos Carvalho mostram que liberdade e ruptura fazem parte do bom cinema.
O deus neon, de Rafael Duarte e Taísa Ennes Marques
O destaque do júri da crítica entre os filmes ficcionais foi O deus neon (2015), de Rafael Duarte e Taísa Ennes Marques (RS). Motivado por posts publicados em notícias na internet, a dupla apresenta uma contundente reflexão sobre o gradual fim da civilidade. Para isso, alterna captação crua de imagens (próximas ao vídeo caseiro) e uma conceitual pós-produção gráfica. No curta, um homem anuncia pela webcam a captura do invasor da sua casa. Pela rede, pede ajuda aos seus seguidores para decidir o que fazer com o cara. Sugestões escabrosas são apresentadas, sendo seguidas à risca pelo agora agressor. O resultado é um corpo semi-destruído pelo captor após intervenções violentas que guardam um segredo-chave para o sentido do filme. Aqui, os realizadores extrapolam a realidade imediata para retomar o mito da criação elaborando não um mundo, mas um próprio deus contemporâneo. Deidade corporificada vingativa, potencialmente assassina, esse deus fluorescente e punitivo materializado em homem se revela frente às brilhantes telas do mundo conectado. Porém, é atrás dessa interface que se move a pulsão de morte e o potencial torturador que habitam cada um de nós.
Caçador, de Rafael Duarte e Taísa Ennes Marques
A dupla Taísa e Rafael também exibiu o excelente Caçador (2014), ensaio sobre a formação do homem em um passado inaudito que tende fortemente à atemporalidade. Com roteiro e fotografia elegantes, o curta propõe uma tensão poético-narrativa que permite a observação do simbolismo heróico mobilizado pelo personagem principal. Figura mítica essencial marcada pela virilidade contra a inquietação e o medo, o herói é frequentemente subjugado por ambos. Suas constantes quedas provam que a tragédia faz parte de seu caminho mundano apesar do herói carregar consigo a força e as armas – exatamente como o caçador. De fato, o personagem interpretado por Samuel Reginatto (premiado como melhor ator do festival) enfrenta seus piores medos após a morte do pai, sucumbindo a eles apesar do ímpeto e da lâmina que geralmente orbitam a imagem do herói. Como um adequado personagem mítico, é apenas descendo ao inferno e voltando que nosso caçador poderá seguir seu destino no mundo. Tecnicamente impecável, com narrativa lenta como a passagem do tempo e fotografia tão bela quanto pode oferecer o mundo natural intocado, Caçador articula imagens pregnantes com autenticidade, se colocando como relíquia do novo cinema gaúcho.
Outros filmes ficcionais se destacaram no festival, especialmente o geométrico O homem que virou armário, de Marcelo Gil Ikeda (CE), A vida tem dessas coisas, de Aluísio Januário da Silva (DF), Pulso, de Dani Suzuki (RJ) e Demônia – melodrama em 3 atos, de Fenanda Chicolet (RJ), premiada como melhor atriz do evento. Também chamaram a atenção #apaixonadinho, de Alexandre Estevanato (SP), Another empty space, de Davi de Oliveira Pinheiro (RS), Horas, de Boca Migotto (RS), Escotofobia, de Rafael Saparelli (RS), e o sensível O nome do dia, de Marcello Quintela e Boynard (RJ).
DOCUMENTÁRIO
Cine Paissandu, de Christian Jafas
Os documentários políticos foram os mais contundentes do festival. Cine Paissandu, de Christian Jafas (RJ), vencedor do prêmio concedido pelo júri da crítica, reúne um ilustre grupo de cineastas, críticos de cinema e produtores culturais para registrar a gênese da cultura cinematográfica nacional no contexto do regime militar sessentista. O filme é uma ode ao cinema de autor, às salas de cinema de rua e, acima de tudo, ao pensamento cultural brasileiro contemporâneo.
Já A praça falou mais alto, de Ranulfo Domingos Borges (GO), focaliza Goiânia como palco do primeiro comício das Diretas Já! Realizado na Praça Cívica, em 1984, o evento que pediu o fim da ditadura e reivindicou eleições presidenciais diretas no Brasil logo se espalharia pelo país, ajudando a pavimentar o caminho para a redemocratização no ano posterior. Por outro lado, Eu Vi, de Fábio Eitelberg, Patrick Torres e Pedro Biava (SP) reúne extensa documentação em texto, áudio e filme de arquivo para explicar como os repórteres brasileiros Helle Alves, Antônio Moura e Walter Gianello protagonizaram um dos maiores furos de reportagem da História: a morte de Ernesto Che Guevara na Bolívia em outubro de 1967.
Também se destacaram quatro docs gaúchos. Djorge – Da Bonja pro Mundo, de Leonardo Petersen, apresenta montagem afiada e ótima movimentação de câmera para registrar como o skatista que dá nome ao curta vem superando grandes dificuldades por meio do esporte. Pobre, Preto e Puto, de Diego Taarel, é um contundente relato sobre como o Estado e a sociedade tendem a aniquilar negros, homossexuais e pobres – e o quanto a vida pode ser terrível para pessoas que reúnem em si todas essas condições ao mesmo tempo. É o caso do impactante Nei D’Ogum, personagem do filme com voz ativa na defesa das minorias.
Já em A Vida como Rizoma, Lisi Kieling faz um dedicado registro audiovisual da genialidade do músico, mecânico e ativista sustentável Klaus Volkmann. E o registro de personagens também é a tônica de Faltam 05 Minutos, exibido por Luiz Alberto Cassol fora de competição. No curta, o cineasta observa a atuação apaixonada dos narradores de futebol que cobriram o jogo Inter-Santa Maria 2×1 Pelotas, no dia 29 de setembro de 2007, considerado histórico por santa-marienses por ter levado o time da cidade ao Gauchão.
EXPERIMENTAL
Premiado como melhor curta experimental pelo júri da crítica, Autópsia exigiu de Mariana Barreiros (RJ) um esforço de montagem considerável. Ensaio crítico contra o machismo e o assédio à mulher no Brasil, o filme abdica de narrador ao costurar dezenas de trechos de reportagens, programas de auditório e vídeos online vergonhosos que falam por si só. Com extenso material de arquivo, Mariana formula um potente discurso contra a violência de gênero utilizando cenas de agressão física e moral veiculadas cotidianamente. Assim, expõe o drama sofrido por quem nem sempre tem voz ou apoio para se defender.
Outros filmes experimentais merecem atenção. Sem medo de repelir o público na experiência metafórica Sangria, Iasmin Martins Alvarez da Costa (SP) observa o amadurecimento feminino em uma obra sensorial de tonalidades cinzentas. O percurso de amadurecimento e a relação do sujeito com sua própria corporalidade (conjunto de potencialidades do corpo em seu processo de significação) também é tema de O Corpo Nu, no qual Diego Carvalho Sá (PE/SP) flerta com o documentário e o ensaístico. Já Cristian Verardi (RS) toca o terror satânico em Ne Pas Projeter, trama metalinguística em que o filme proibido dentro do filme oficial captura o protagonista enviando-o ao quinto dos infernos. Ótima homenagem ao horror como gênero e a seus ícones estéticos e narrativos, o curta também celebra a moribunda sala de cinema PF Gastal, cenário do filme e templo do bom cinema em Porto Alegre que já teve dias melhores.