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Publicado por em set 2, 2019 em Artigos |

47º Gramado (2019) – Balanço: O cinema é delas

Por Luiz Joaquim

Num exercício de síntese, olhar para trás e tentar estabelecer o que significou a 47a edição do Festival de Cinema de Gramado é também fazer um exercício de questionamento no qual a pergunta matriz seria: qual cinema o mundo quer ver hoje; ou, qual cinema interessa ao mundo hoje?

Tal provocação pode encontrar uma resposta instigante se percebemos que o mais interessante cinema apresentado nesta edição do festival gaúcho, constando em quase todo os títulos de suas principais mostras, foi a presença e o protagonismo da mulher.

Fosse no campo da direção ou no da interpretação (ou em ambos os casos simultaneamente, como na coprodução mexico-costarriquenha Dos Fridas, de Ishtar Yasin) ou fosse nos temas pontuados pelos filmes, era a perspectiva feminina, dentro de seu universo de relacionamento com o que lhes cerca, que gerava as melhores experiências dentro do Palácio dos Festivais neste 2019.

A começar pelo longa-metragem que, inquestionavelmente, apresentou o melhor conjunto de resultados em todos os aspectos artísticos: Pacarrete, de Allan Deberton. Um filme 100% tomado por uma mulher fisicamente frágil e, ao mesmo tempo, com uma personalidade e perseverança cativante e inabalável. Estando essas características sempre a serviço das sutilezas de uma mulher, vítima de preconceito por apreciar arte.

Marcélia Cartaxo brilhou intensamente aqui, assim como brilhou outra atriz, a costarriquenha Daniela Valenciano, também como protagonista em El despertar de las Hormigas, de Antonella Susassassi Furnis. No caso, a força de sua personagem, Isabel, estava em sua coragem. Em confrontar o marido contra os silenciosos gestos machistas dele.

Antonella Furnis criou aqui, numa economia narrativa elegante, um ambiente sufocante para Isabel que, enquanto cuidava das suas duas meninas e ganhava dinheiro para a casa costurando roupa, tinha também de resolver-se com o marido quanto a determinação dela em não querer engravidar novamente.

Era uma mulher pleiteando a autonomia de seu próprio corpo, em luta contra os demônios que uma sociedade patriarcal definiu, historicamente, em benefício próprio.

Aqui, Antonella Furnis conseguiu também desenhar um personagem masculino (o marido de Isabel, vivido por Leynar Gómez) naturalmente problemático, em consonância com seu habitat social, mas, ainda assim, com uma disposição para a mudança. Para a melhora. E o que há de bom em El despertar de las Hormigas não encerra aí. Na verdade, se complementa em suas opções narrativa e estética.

No já mencionado Dos Fridas, a icônica artista mexicana (encarnada por Ishtar Yasin) e sua enfermeira-amiga Judith (Maria de Medeiros) formam um casal de amigas cuja afeição e confiança uma pela outra as define em si. Entre elas, as dores físicas de mazelas que as colocaram ambas de cama, em tempos diferentes; além da morte lhes cercando constantemente, ‘Morte’ lírica e ricamente representada pela imaginação da diretora Yasin  E nessa construção dramática, os detalhes do rosto forte de Maria de Medeiros é o que dá a modulação grave ao que chega ao espectador.

Pelo longa gaúcho Raia 4, de Emiliano Cunha, a complexidade de uma menina solitária, em transformação do corpo, despertando sexualmente e sob pressão por ser uma atleta de natação, era o que pontuava a enredo. A relação da menina com a mãe e com a empregada doméstica e, ainda, a inveja que sentia pela amiga mais desenvolvida não é nunca simples de traduzir pela ótica masculina.

Numa outra via cinematográfica, o de uma produção particularmente preocupado em como será recebido no mercado, também tivemos a luz recaindo sobre fortes personagens femininas. Fosse pelos nacionais, Hebe: A estrela do Brasil, de Maurício Farias, e Veneza, de Miguel Falabella, fosse pelo thriller uruguaio En el pozo, de Bernardo e Rafael Antonaccio.

Em Hebe, a produção parece ter definido a dedo um momento de sua extensa carreira, no caso os anos 1980, em que a violência doméstica que Hebe sofria servia bem ao filme como um catalisador dramático para acender a empatia do público pela protagonista.

No caso de Veneza, a força está (ainda que desequilibrada) na união das prostitutas do bordel da Gringa (Carmen Maura), idosa, cega e determinada em viajar para a Itália em busca de um amor da juventude. No En el pozo, são três homens contracenando com uma mulher, estando ela no centro do conflito, mas sendo ela a dar a solução ao que se sucede.

Entre os curtas-metragens também não era pequena a presença das mulheres fortes ou em processo de superação. Desde a pequena que não se dobra a seguir pelo rio no bote com a família em A pedra, de Iuli Gerbase, até a guria que está aprendendo sobre si mesma na animação Apneia, de Carol Sakura e Walkir Fernandes.

Num outro lado da questão e gênero, a figura masculina foi contemplada aqui com tipos incomuns, num bom sentido, como figuras num processo de evolução que procura seguir as mulheres para o terreno onde elas estão cada vez mais firmes e seguras.

É o caso do marido de Isabel em Hormigas; e também do ex-goleiro que, em desespero, vira traficante de corpos humanos no longa boliviano Muralla, de Gory Patiño, mas, arrependido, corre atrás de uma redenção; ou ainda no personagem de Rômulo Braga no curta Marie, de Leo Tabosa. Vale destacar ainda que, aqui, tem uma mulher trans como protagonizando uma mulher trans e uma atriz trans interpretando uma mulher heteressexual.

Outro retrato comovente de um homem bom aparece no belo exercício estilístico realizado pelos diretores Felipe Arrojo Poroger e Toti Loureiro no curta Amor aos vinte anos. O protagonismo é masculino, mas seu olhar sobre a mulher, a namorada distante, é sempre amoroso e generoso; nunca maldoso, ainda que o protagonista (muito bem defendido por Poroger) sofra duramente pelo abandono.

Mas, como não podia deixar de ser, a versão masculina predominante (e preocupante) no mundo real ainda se fez presente (nenhuma surpresa aqui) em títulos vistos em Gramado 2019. No En el pozo, é a irracionalidade e a brutalidade da ideia de posse do ciúme masculino que ativa toda a tensão do filme – o que pode ser defendida (e questionada) por alguém como apenas uma ferramenta do filme para se chegar dramaticamente aonde se quer chegar ali.

O caso mais delicado apareceu no último filme exibido em caráter competitivo desta edição: o longa 30 anos blues, de Andradina Azevedo e Dida Andrade. Aqui a ideia era fazer um retrato de uma geração masculina contemporânea próxima aos 30 anos de idade (nos dois personagens masculinos interpretados pelos diretores) e também nas figuras femininas, representadas pelas namoradas dos dois, tendo todos as quatro figuras dificuldade para amadurecer.

O resultado, entretanto, soa mesmo, e mais forte, como um desenho de dois cafajestes que basicamente não se esforçam para crescer, a despeito do que sugere a última sequência do filme. Uma pena.