Atualidade de As Boas Maneiras
Por Leonardo Bomfim, especial para o site da Accirs
Poucos filmes contemporâneos são tão radicais em sua estrutura como As Boas Maneiras, essa extraordinária história de amor(es) e horror(es) realizada por Juliana Rojas e Marco Dutra. Se o filme dividido em dois é uma marca do nosso tempo (aparece em filmografias essenciais do século 21: David Lynch, Apichatpong Weerasethakul, Miguel Gomes, Hong Sang-soo, José Luis Guerín…), aqui encontramos uma abordagem particular. Nesses filmes, geralmente uma nova ficção surge a partir de uma interrupção brusca. Histórias sem fim dão lugar a outra história, que muitas vezes re-contextualizam o que já vimos, estabelecendo novas regras, novos jogos, novas perspectivas. Vale o dito de um dos sete anões de A Cara que Mereces (2005), o longa de estreia do português Miguel Gomes: “para ouvir uma história é preciso ter paciência com as novas histórias que surgem antes do fim”.
O caso mais extremo entre os citados é o de Certo Agora, Errado Antes (2015), de Hong Sang-soo: antes mesmo de um desfecho definitivo, o filme literalmente recomeça (com direito a novos créditos e uma brincadeira com o título) para que os personagens tenham uma nova chance após uma desastrada trama amorosa. Escancara aquilo que a história do cinema jamais esquece: o fantasma de Um Corpo que Cai alimenta (e atormenta) os fotogramas mais instigantes dessa arte desde 1958.
O que assombra mesmo em As Boas Maneiras é o fato de que estamos diante de um filme que chega duas vezes ao desfecho. Há duas histórias com começo, meio e fim bem definidos. Na primeira, há a definição dos personagens e do espaço, o estabelecimento de uma relação, a descoberta de um problema, que será resolvido em um clímax visceral e inesperado. Na segunda, encontramos novamente a definição dos personagens e do ambiente, o estabelecimento de uma relação, a descoberta de um problema, que será resolvido em um clímax esperado e emocionante. Uma diferença, como bem observou o crítico Ulisses da Motta, é flagrante: na primeira parte sabemos mais que as personagens, o espectador está na frente; na segunda, tudo é mais imprevisível – caminhamos praticamente ao lado da mãe que corre atrás do seu pequeno lobo. A relação entre partes que pedem diferentes envolvimentos do espectador deixa tudo ainda mais desconcertante.
Ainda dentro dessa perspectiva, se muitas pessoas acusam uma queda de ritmo no meio da trama de As Boas Maneiras, é por que a coragem narrativa de Rojas e Dutra é de fato assombrosa. Reformulando a frase de Miguel Gomes, aqui é preciso ter paciência para conhecer uma nova história depois que a outra chegou ao fim. Dessa forma, os diretores fogem da ideia do jogo dos sete erros que pode influenciar o espectador desse tipo de filme em díptico. Não somos conduzidos a repensar as ações e criações da primeira parte interrompida à luz de uma segunda (como em Cidade dos Sonhos, de Lynch e Síndromes e um Século, de Apichatpong, por exemplo). A dialética de Rojas e Dutra não cria o jogo do “uma sobre a outra”, mas o de “uma contra a outra”. As reflexões podem nascer do choque entre o que aparece em cada relação apresentada. Por exemplo: o carinho e o controle na vida de duas mulheres que são amantes e, ao mesmo tempo, patroa e empregada/ o carinho e o controle de quem é, ao mesmo tempo, mãe de um garoto de sete anos e de um lobisomem; ou a ausência completa de um corpo masculino na primeira parte e a grande presença deles na segunda.
O jogo com o duplo em um filme que se apropria de diversos gêneros, entretanto, ganha a sua forma definitiva no emocionante desfecho: quando uma reconciliação possibilita a última chance de luta contra a turba dos cidadãos de bem (a imagem das mãos dadas antecipa, inclusive, a mais famosa imagem de resistência criada nas redes sociais no pós-eleição imediato de Bolsonaro – aquela que diz “ninguém solta a mão de ninguém”). Mas a esperança ainda não venceu o medo. Se em outro grande filme brasileiro do ano, Arábia, o genial desfecho conjuga o despertar e o adormecimento, em As Boas Maneiras também encontramos essa contradição dolorosa. Quando, no plano final, mãe e filho se unem para encarar de peito aberto a multidão, os diretores mostram por que a mise-en-scène é o elemento mais essencial da arte cinematográfica. Um enquadramento frontal, dedicado aos rostos com os dentes cerrados, certamente reforçaria a imagem quase utópica de uma fortaleza dos monstros contra o mal do bem. Mas Rojas e Dutra decidem terminar o filme com as costas dos protagonistas diante de uma grande porta fechada. Os dois resistem, mas também estão presos.