Cartografia da câmera, caleidoscópio da América
Por Guilherme da Rosa
O documentário Pachamama (2008), para além de ser visto em relação aos filmes anteriores de Eryk Rocha (Rocha que Voa, 2002, e Intervalo Clandestino, 2006) pode ser, talvez, lido como uma busca do filho de Glauber por alguns interesses muito caros a seu pai. Talvez se possa pensar Pachamama como uma reedição de um anseio cinemanovista de “descoberta do Brasil”, só que com um novo sentido: de cartografia às avessas com a busca de seus limites. A partir de marcas do início do filme, é possível observar como será feita esta leitura, tendo-se como dispositivo a imersão a uma viagem de 14 mil quilômetros, desde o Rio de Janeiro até o Peru e a Bolívia.
A descoberta iniciada com o projeto do cinema moderno precisa então ser reescrita, agora em uma relação de alteridade. Pois para entender o Brasil é necessário percorrer suas fronteiras e percebê-lo a partir dos olhos do outro. Essa relação pode ser percebida no próprio ponto de vista da câmera como um olho atento e em função do outro. A gestualidade presente nas imagens deixa indícios desta imbricação câmera-corpo e coloca o espectador sempre em relação a um espaço e tempo bastante subjetivos. Começa-se o mapa pelo sul no sentido da cartografia de um Brasil com raízes latino-americanas, da busca por se redescobrir pelos olhos de quem está situado em uma mesma região e é submetido a processos históricos e políticos com mais semelhanças do que diferenças. Leia-se, nesta relação, a emergência de governantes oriundos das classes populares e como se pode compreender o acontecimento de Lula no Brasil, observando as palavras do boliviano Evo Morales em relação a seu povo e o pedido por um redescobrimento das identidades locais. Ainda que se considere a particularidade da participação indígena na política como um anseio peruano/boliviano, ver esta realidade pode ser uma estratégia para o reconhecimento brasileiro de seu processo político.
A câmera corpórea que habita o interior do veículo é permeada pelo som off do rádio e de outros indícios, também sonoros, dos territórios. Estas amostras vão fornecendo aportes para que o próprio espectador ouse fazer esta cartografia entre os três países. Elas parecem ter a função de expor fraturas, traços comuns, anseios e pulsões. É a inscrição na imagem em movimento de alguém que prefere ver as coisas a partir de suas fronteiras. O filme torna-se um caleidoscópio impresso pela câmera como extensão da mão do cineasta que não se resume apenas a este registro, mas também a opção de montar as sequências de forma fragmentária, o que por vezes contribui para que não tenha uma articulação aparente. Trata-se de uma obra que faz com que as imagens sejam um espaço preferencial para a construção de um mapa latino-americano, que, como a obra América Invertida do uruguaio Joaquín Torres-García, pode ser iniciado pelo sul.