Como foi o futuro? (Entrevista com Jean-Claude Bernadet)
por Daniel Feix
O tradicional balanço de final de temporada, na virada de 2003 para 2004, confirmou o ano que terminava como aquele em que o público brasileiro definitivamente reencontrou o cinema nacional. Mais de 21% dos ingressos vendidos nas bilheterias das salas de exibição diziam respeito a sessões de filmes brasileiros – número que não se via desde 1988 e que, com isso, estabelecia o recorde da fase conhecida como “retomada” da produção nacional.
Na comparação com o ano anterior, a quantidade de espectadores que foi aos cinemas assistir a um título brasileiro (22 milhões) aumentou em mais de 200%. Entre os 10 filmes mais vistos em 2003, segundo dados da Filme B, três eram brasileiros: Carandiru (4,6 milhões de espectadores), Lisbela e o Prisioneiro (3,1 milhões) e Os Normais (2,9 milhões). Além desses, também passaram de 1 milhão de espectadores: Xuxa e os Duendes 2 (2,3 milhões), Maria, Mãe do Filho de Deus (2,2 milhões), Didi – o Cupido Trapalhão (1,7 milhão) e Deus É Brasileiro (1,6 milhão).
Qual era, naquele momento, a análise que se fazia desses dados? E qual a expectativa para o futuro imediato diante de uma mudança tão significativa? A entrevista a seguir, com Jean-Claude Bernardet, o decano dos críticos e pesquisadores brasileiros, buscava respostas para essas questões – mas acabou sendo também um descontraído bate-papo sobre fotografia, literatura, interpretação e o que o próprio Bernardet chamou de “crise da ficção” e “obsessão pelo documentário”.
A leitura, como se pode constatar abaixo, ganha elementos enriquecedores cinco anos depois – especialmente no sentido de tentar entender o que aconteceu com o cinema nacional no período imediatamente posterior.
Por que o público voltou a ver os filmes nacionais em 2003?
Jean-Claude Bernardet – É uma pergunta difícil. Acho que os cineastas ainda não têm essa resposta. Porque o público é muito amplo, diversificado. A meu ver, o que inclusive fez com que o cinema brasileiro tivesse muita popularidade nos anos 50, 60 e 70 foi a diversidade da produção. Havia filme para todo mundo ver, desde o cinema bem popular (comédias, chanchadas, pornochanchadas, filmes de cangaço) até o erudito (Cinema Novo, depois Julio Bressane etc). O que aconteceu foi que a produção nacional praticamente acabou no início dos anos 90 e, quando voltou, quando houve a retomada, os filmes brasileiros não tinham espaço – o circuito de exibição estava restrito a salas especiais como as do Espaço Unibanco, do Espaço Banco Nacional de Cinema, entre outros. Quem freqüenta esses locais? O público culturalmente classe A. O restante dos espectadores estava afastado dos filmes nacionais. Daí que, acho, é natural que nossa produção nos anos 90 é marcada pela grande quantidade de filmes feitos para esse público culturalmente privilegiado, do gueto.
2003 foi o ano em que o cinema nacional saiu desse gueto? Por quê?
Tenho a impressão de que um dos principais motivos é a mídia da televisão, que tem beneficiado alguns filmes brasileiros de um ou dois anos para cá – principalmente a aposta da TV Globo em algumas produções. Essa mídia apresenta os nossos filmes a um nicho enorme de espectadores que até então mal sabia da existência deles. É importante ressaltar: esse reencontro do público com a produção nacional acontece quando os nossos filmes saem do gueto.
Mas o grande público ainda está afastado das salas de cinema, não? Quem vai ao cinema no Brasil ou é o público do gueto, que freqüenta as cinematecas, ou então são aqueles espectadores que têm dinheiro para pagar uma sala de shopping center.
Sim, sem dúvida. O público que está assistindo aos filmes nacionais, hoje, é o que eu chamaria de universitário, embora ele não seja composto obrigatoriamente por quem é da universidade. Tratam-se de espectadores bem intelectualizados, que procuram os chamados bens culturais de alto nível. O que é muito positivo é que até os filmes nacionais que não contam com a mídia da tevê, que estão ainda presos ao gueto, já estão interessando a um público bem maior. Tenho amigos que só não vêem alguns filmes brasileiros porque não se sentem à vontade em entrar em um cinema como, por exemplo, o Espaço Unibanco – porque as pessoas são diferentes deles. Ou seja: o que falta é que os filmes saiam do gueto.
Alguns filmes brasileiros atuais estão tratando de temas sociais importantes, como a violência – coisa que praticamente não acontecia há alguns anos. Por exemplo: Cidade de Deus, Carandiru, O Homem do Ano etc. Esse não pode ser um dos motivos para o reencontro do público com o cinema nacional?
Pode ser. Só que esses filmes não fazem um registro da violência, não mostram a realidade indo direto às fontes. Eles enfocam o tema muito mais pela visão da classe média. Basta compará-los a vídeos produzidos em oficinas nas periferias das grandes cidades: a maneira com que o povo das favelas se retrata – e vê os problemas sociais – é totalmente diferente. Os filmes que falam sobre a violência hoje me parecem mais o resultado do pavor da classe média diante do crescimento da violência do que qualquer outra coisa. Há duas declarações do Drauzio Varella sobre Carandiru que eu acho elucidativas sobre isso. Numa delas ele diz que a classe média tem uma visão do universo carcerário como se ele fosse extremamente violento. Atribui isso ao fato de que se tem conhecimento desse universo somente por meio da imprensa. E a imprensa só se mobiliza quando há rebelião, assassinatos etc. Só que, diz Drauzio, esse não é o cotidiano da cadeia. Ele conclui o comentário dizendo que, em três ou quatro anos de trabalho na penitenciária, não havia visto nenhum assassinato. Se você comparar Carandiru a O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento (documentário que mostra o cotidiano do Carandiru antes da implosão e no qual os detentos são ensinados a operar a câmera para documentarem sua própria realidade), vai perceber que O Prisioneiro não é um filme violento. É quase um filme intimista, de tão próximo dos presos.
Mas ele tem cenas mais chocantes que Carandiru.
Sim, é um filme muito forte. Mas você não vê cavalos invadindo a cadeia ou um massacre acontecendo. A outra declaração do Drauzio Varella é uma resposta que ele deu quando foi perguntado a que atribuía o sucesso do seu livro. Ele respondeu algo assim: a classe média sempre teve curiosidade em saber como é o universo carcerário, e Estação Carandiru apresenta esse universo justamente sob o olhar de alguém que pertence à classe média; não se trata de um acesso direto ao ambiente da prisão, mas sim de um acesso mediado por um médico. De forma que eu acho que não se pode dizer que esses filmes abordam diretamente as temáticas sociais. Eles as abordam por meio de um viés ideológico, que é o viés do segmento social ao qual pertence ou ao qual se dirige o cineasta.
Tem se falado muito de “estetização da pobreza” – principalmente com o trabalho da pesquisadora Ivana Bentes, que criou a expressão “cosmética da fome”, em referência ao manifesto Estética da Fome, do Glauber Rocha. E alguns críticos e pensadores também têm insistido que filmes brasileiros recentes estão repetindo muitos “vícios” das produções de televisão. O que o senhor pensa dessas relações?
Acho a “cosmética da fome” uma excelente expressão. Mas eu tenho dúvidas quanto a sua eficácia para interpretar os filmes. Porque o cinema do Glauber é muito estetizado. Deus e o Diabo na Terra do Sol é uma ópera – não tem um contato direto com camponeses. Acho que a “cosmética da fome” denota, isso sim, uma certa nostalgia dos anos 60. Atribui-se a filmes recentes uma fotografia publicitária, mas eu contraponho: Glauber, Vidas Secas etc. têm fotografias altamente elaboradas. Quanto à comparação com a tevê, acho que a idéia que se faz sobre essa tal “linguagem da televisão” é de uma forma geral meio equivocada. A montagem mais ágil e mais decupada, que aparece por exemplo em Lisbela e o Prisioneiro, é a linguagem de somente um certo tipo de programas de tevê. Não é a linguagem, por exemplo, das novelas, dos telejornais, dos programas de auditório: todos têm planos mais longos e um ritmo menos ágil. Acho que também aí há uma certa nostalgia de quando se dava muita preferência ao plano de longa duração, ao movimento de câmera que acompanha a ação do ator no tempo que ela acontece realmente etc.
Quem faz essas análises está sendo nostálgico?
Se qualificamos a fotografia dos filmes de “elaborada demais”, ou a montagem de “ágil demais”, estamos sendo saudosos, sim. Agora, eu, pessoalmente, não deixo de ter um certo receio quanto à televisão. Quase todos os atores que fazem cinema, no Brasil, também trabalham na tevê – são quase obrigados a isso. E eles levam para os filmes o mesmo estilo de atuação da tevê – naturalista, que apresenta grande verossimilhança na representação do real. É muito difícil um ator trabalhar fora desse registro. Um exemplo: muita gente disse que a Débora Duboc pratica o chamado overacting no filme Latitude Zero. Eu não concordo. Acho, isso sim, que ela trabalha num registro que não é o do naturalismo. A mesma coisa com relação ao Selton Mello no Lavoura Arcaica. Eles não estão over. Somos nós, que temos essa espécie de norma da representação naturalista, que estranhamos suas atuações.
Esse sim é um vício da tevê.
Sim. Recentemente eu atuei num curta meio experimental do Eugênio Puppo, em que ele me dirigiu num registro totalmente diferente, quase expressionista, que com certeza vai parecer over e talvez até ridículo. Talvez até seja mesmo, porque não sou ator profissional. Mas certamente vai fazer quem ver o filme pensar sobre o assunto. É essa a minha intenção: estabelecer uma polêmica com relação às representações naturalistas – que são boas para certos filmes e programas de televisão, mas como norma única, hegemônica, aí não. Aí é opressão.
Que filme é esse?
Ainda não está totalmente pronto. Tem só um título provisório: Compêndio do Final da Vida de um Homem Velho. Mostra a morte de um homem de uns 80 anos depois que ele sofre uma crise histérica.
Quais as conseqüências que esse reencontro do público com o cinema nacional pode causar nos próximos filmes nacionais? Pode-se vislumbrar mudanças estéticas, por exemplo, num futuro próximo?
No que isso tudo vai dar ainda não se sabe. Acho que o momento é de transição. Algumas estratégias de mercado estão sendo testadas pelas produtoras e distribuidoras. Se elas funcionarem e esses bons números de público se estabilizarem, com o público de massa voltando definitivamente a ver produções brasileiras, aí sim eu acredito que os filmes propriamente ditos podem mudar. Mas só assim poderemos entrar em uma nova fase, com mudanças nos temas e nas formas dos filmes.
Em um artigo recente na Revista de Cinema, o senhor faz uma analogia semelhante à que fez o cineasta Rogério Sganzerla na revista Aplauso edição 48: suas análises apontam desvantagens para o atual cinema brasileiro na comparação com o argentino. Por que estamos atrás deles?
Basicamente, pela agilidade narrativa. Quando eu faço roteiros em parceria com diretores, sinto que eles querem explicar cada ação do personagem. Cada ato tem de ter uma série de justificativas e mediações que, a meu ver, tornam a narrativa muito pesada, cansativa. Há um trabalho fraco sobre a elipse. Alguns cineastas ficam todo o tempo procurando as motivações dos personagens, justificativas psicológicas para seus atos, deslocamentos etc. Nada impede que você justaponha diversos momentos de um personagem sem que se explique como ele passou de um a outro. Por que não apresentar alguns desses momentos e algumas elipses para que o personagem vá se compondo na cabeça do espectador? Estamos muito presos a uma idéia de narrativa que remete à escola realista de literatura, que explica e analisa tudo minuciosamente. Não sei por que, já que em diversos países até o cinema dito comercial já incorporou a fragmentação narrativa.
Cite algum exemplo, por favor.
Desmundo, do Alain Fresnot. A protagonista está no sítio com o marido. O espectador entende perfeitamente que ela não gosta do marido, quer escapar daquela situação, que é uma situação de opressão. Uma velha senhora vai visitá-la. Ela quer expor sua lamentação, quer pedir ajuda, mas não pode fazer isso na frente das outras pessoas. Nas primeiras versões do roteiro, ela faz o pedido. Na versão final, que mudou a partir dos ajustes da roterista Sabrina Anzuategui, a protagonista vê a velha deitada, elas se olham, e ela diz, aflita: “Eu preciso voltar porque ele pode acordar”. Tudo está dito nessa frase. É um exemplo de leveza narrativa, pois o que ela iria dizer de certa forma já era previsível, assim como a resposta da senhora. A eliminação de um diálogo maior, a criação de uma elipse, dá muita força à atitude dela.
Um de seus livros mais importantes, Cineastas e Imagens do Povo, foi relançado nos últimos meses. A primeira edição, de 1985, ficou marcada pela análise dos principais documentários brasileiros feitos até então. A edição atual acrescentou comentários sobre filmes recentes, mas não incluiu títulos interessantes como O Prisioneiro da Grade de Ferro e os filmes da nova fase de Eduardo Coutinho. Por quê?
Concordo que O Prisioneiro é marcante, um dos grandes filmes que vi ultimamente. Mas aconteceu com ele exatamente o que havia acontecido nos anos 80 com o Cabra Marcado para Morrer, do Coutinho: eu vi esses filmes quando o livro já estava praticamente pronto. Como são produções muito importantes, eu não quis pedir novo prazo para a editora. Preferi deixar para edições posteriores, quando terei tempo para fazer algo mais elaborado. A nova fase do Coutinho também precisa de uma análise mais detalhada. E eu não tive tempo para fazer isso, pois quando ganhei a ação pelos direitos do livro contra a Editora Brasiliense – que detinha esses direitos e não os liberava ou reeditava a obra –, a Cia. das Letras me pediu o material que eu tinha para fazer uma reedição imediatamente. Mas eu concordo com suas duas objeções: acho que são justas.
A polêmica que o senhor levanta quando fala do uso da entrevista nos documentários brasileiros recentes pode se aplicar aos filmes da nova fase do Coutinho?
Não. O sistema de filmar do Coutinho é diferente de tudo, é muito particular. O que eu contexto no livro é a hegemonia de um sistema de entrevistas que é praticado quase de forma mecânica atualmente. Os documentários atuais têm uma fixação sobre o verbal. Nossos documentaristas não dirigem sua atenção, sua observação a outros aspectos que não o verbal. Os filmes estão cada vez mostrando menos e explicando mais por meio de entrevistas.
Exceto Nelson Freire…
Ah, sim. O João Moreira Salles teve uma grande sorte nesse filme: o Nelson Freire não fala. A pessoa que ele está documentando, cuja vida e obra são o objeto de seu filme, não fala. Ruim? Que nada, o resultado é excelente. A cena em que o Nelson ouve um disco da Guiomar Novaes é um exemplo: ele só ouve, não fala nada, mas você percebe o encantamento por sua expressão. Ele até tenta falar, mas não sai nada, fica apenas admirando a música. Outra coisa que está em Nelson Freire e que praticamente sumiu do documentário: a relação entre pessoas filmadas. Quando a Marta Argerich pede para o Nelson Freire limpar o piano, e os dois começam a conversar, se estabelece ali um momento muito belo.
Por que o senhor acha que Cineastas e Imagens do Povo, que é um livro especializado, sobre um assunto específico, ganhou tanto destaque na mídia e fez um sucesso tão interessante de público?
Porque todo mundo está preocupado com documentários, não só os cineastas. O momento é favorável para o livro. E por que todo mundo está preocupado? Porque a atitude documentária é uma atitude muito comum hoje em dia. Atualmente há cada vez mais trabalhos de artes plásticas, literatura, cinema ficcional, televisão etc., que têm em sua base, em sua raiz, o documentário. Se você for analisar um ótimo romance de ficção brasileiro recente, o Nove Noites, do Bernardo Carvalho, vai perceber que a base dele é uma pesquisa. Não foi um romancista que sentou no seu computador e criou tudo em sua cabeça. A própria dinâmica do livro, através dos seus narradores, é uma dinâmica de pesquisa, de ir atrás, de saber quem foi e o que aconteceu com o antropólogo americano que estava trabalhando na Amazônia etc. Os reality shows, que são os maiores sucessos da tevê brasileira recentemente, também expressam uma inquietação, uma sensibilidade particular ao que a gente chama de documentário. Mais um exemplo: a importância que as imagens de vigilância estão ganhando inclusive em pesquisas estéticas – hoje há artistas e pesquisadores fascinados pelo que o Jorge Furtado chama de “tevê portaria”.
Por favor, explique melhor o que é exatamente essa “atitude documentária”.
Trata-se de algo que tenha origem na realidade – mesmo que seja totalmente artificial, montado etc. É o que o Lucas Bambozzi chama de “esfera documentária”. De acordo com as pesquisas que ele vem desenvolvendo, há coisas das mais diversificadas que acontecem dentro dessa esfera, incluindo, segundo me disse o próprio Lucas, o cinema pornográfico.
Já se pode chegar a alguma conclusão sobre isso? Por que o artista está tão obsessivo – se é que dá para usar esse termo – com a realidade? E por que o público quer isso?
Acho que se pode usar o termo obsessão, sim. Uma das razões, na minha opinião, é que a ficção está em crise. A representação está em crise. No teatro, no cinema etc. Há alguns anos seria inconcebível que um programa como o Cena Aberta fosse ao ar na TV Globo. Afinal de contas, o espetáculo, no Cena Aberta, não é a adaptação do livro. A história desse livro é contada, mas a estrela do programa é o processo que envolve a adaptação. Tenho impressão que os leitores, os espectadores acreditam cada vez menos na ficção – falo dessa ficção naturalista/realista que conhecemos desde o século 19. O que, na realidade, não é totalmente novo. A literatura de tipo, documentária, já aparece desde a década de 70 – e não aparece de uma hora para outra, acontece depois de uma evolução, de uma progressão. O que acontece é que essa mudança está ganhando dimensões significativas agora. Além disso, acho que essa atitude de pesquisa, de indagação, de documentação é um pouco uma resposta a uma sociedade cada vez mais virtual. Pelo menos para algumas camadas sociais, as noções de tempo, de espaço e, conseqüentemente, dos objetos, do real, está mudando vertiginosamente. Nossa vontade de estabelecer contato com a realidade – mesmo que seja uma realidade construída – também é uma resposta à virtualidade.
É verdade que o senhor está preparando uma exposição de fotos em Porto Alegre?
Estava, mas foi algo que não deu certo. Os donos das galerias – de Porto Alegre e também de São Paulo – se interessaram, mas acharam que era algo pouco comercial. Depois de tentar alguns contatos, percebi que, se você não estiver inserido no circuito de galerias, encontrar espaço se torna muito difícil.
Além de trabalhar com fotografia, sabe-se que o senhor também está escrevendo um livro cujo assunto é artes visuais. Trata-se uma mudança de interesses ou uma simples ampliação do seu campo de atuação?
A idéia é escapar da especialização. A especialização excessiva por um lado traz vantagens, porque você conhece em profundidade determinada área. Mas, por outro, traz uma enorme desvantagem. Porque todas as explicações e a própria compreensão que você tem dessa área provém da própria área. Se você trabalha só dentro de um campo de produção, as atitudes que perpassam outros campos vão acabar lhe escapando. Em 2003 eu participei de uma exposição de artes plásticas em que todos os artistas trabalham a partir de práticas documentárias. Se eu continuasse me dedicando só ao cinema não perceberia que a prática documentária vigora também em outros campos de produção.
Foi por isso também que o senhor desistiu de ser “apenas” crítico e pesquisador e passou a atuar, a dirigir filmes e a escrever roteiros?
Sim. Passei para o outro lado da tela quando me dei conta de que a formação do crítico não deve ficar restrita a ler livros e ver filmes. Por isso que fui assistir a filmagens, montagens etc,, e depois decidi que seria ótimo assumir responsabilidades no set e na produção. Tudo para melhorar meu desempenho como crítico.
Sobre o que trata exatamente esse livro em que o senhor trata de artes visuais?
É um ensaio sobre janelas. E não é um livro exatamente sobre artes visuais. Minha idéia era trabalhar com algo que existe em diferentes modos de expressão artística – justamente para fugir da especialização. A janela é um tema plástico – e também narrativo – muito interessante. Está presente nas artes plásticas, na poesia, na literatura, na fotografia, em algumas peças de teatro etc.
Por que alguém que nasceu na Bélgica e tem família francesa resolveu se fixar no Brasil contra a vontade da família e, mais que isso, estudar e fazer reflexões sobre a cultura brasileira?
Na verdade eu decidi ficar no Brasil quando percebi que meus pais não tinham condições financeiras de voltar à França – pertenço a uma das tantas famílias que deixou a Europa logo depois da 2ª Guerra com medo de um novo confronto. Viemos quando eu tinha uns 12, 13 anos. Quando decidi ficar, e aí rompi com meus pais – que não queriam que eu ficasse aqui –, eu estava com 18, 19. Bem, no momento em que tomei essa decisão, veio a inserção natural na sociedade, pois até então eu vivia na colônia francesa, falando francês e convivendo com franceses. Aí fiz várias coisas, como cursos de desenho e publicidade. Mas foi só num cineclube que algumas pessoas se interessavam pelo que eu dizia. Foi por isso que acabei trilhando meu caminho pelo cinema. Digamos que o cinema foi minha via de inserção na sociedade brasileira. Hoje vejo que poderia muito bem não ter sido, pois a minha opção não foi propriamente pelo cinema, mas sim pela inserção na sociedade brasileira.