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Publicado por em set 7, 2019 em Artigos |

Curtas-metragens gaúchos: Prêmio Assembléia Legislativa

Por Rodrigo de Oliveira

O MENINO DA TERRA DO SOL

O tom idílico de O Menino da Terra do Sol tem muito a ver com a nostalgia que o curta de Michel Marchetti deseja dividir com o espectador. A história é baseada em fatos, na vida do escritor de Flores da Cunha Flávio Luis Ferrarini. Na trama, acompanhamos Nini ainda criança, descobrindo paixões, seja por uma coleguinha da escola, seja pela máquina de escrever. A produção é caprichada, com bela fotografia. A paisagem por si só já dá grandeza ao curta. As distensões de tempo, no entanto, incomodam, assim como a trilha pesada, gerando um clima dramático demais. E mesmo adoráveis, as crianças careciam de um roteiro menos decorado, mais orgânico.

TESOURINHO

Esse foi o ano das animações no Festival de Gramado. Todas tiveram qualidade ímpar – e aqui há de se destacar o trabalho da Universidade Federal de Pelotas, que trouxe dois excelentes títulos para a disputa – um deles, inclusive, vencedor da Mostra. Esse Tesourinho, de Bruna Dreyer Nery, tem belos traços e uma história simples e singela. A menininha que passeia pelo casebre enquanto sua avó cochila, se transformando em algo mais no decorrer da trama. Sem diálogos, a boa trilha sonora de Vinicius Terres dá o tom dessa animação, trabalho de conclusão de curso de Bruna e uma bela escolha do corpo de seleção do prêmio Assembleia Legislativa.

QUERO IR PARA LOS ANGELES

Um dos destaques do primeiro programa de curtas, Quero ir para Los Angeles fala de sonhos e de preconceitos nada velados. Na trama, Maria é uma garota negra, universitária e que tem um desejo que poderia parecer impossível: viajar até Los Angeles. Ela guarda dinheiro, divide seu sonho com as colegas (uma delas, o clássico exemplo do racista que não se vê como tal), mas a responsabilidade pode lhe roubar a concretude dessa vontade. A diretora e roteirista Juh Balhego é perspicaz nas imagens que concebe, mostrando o abismo entre sonho e real (explicitado na cena em que Maria empurra seu carro). O final é bonito e resolve liricamente a trama.

ENDOTERMIA

Emiliano Cunha foi polivalente em Gramado, tendo seu longa-metragem Raia 4 exibido (e premiado) nas Mostras Nacional e Gaúcha, e ainda esteve com esse curta dentro da Mostra Assembleia Legislativa. Demonstrando sua já conhecida habilidade em dirigir elencos mirins, o cineasta mostra um garotinho (Malyck Badu, ótimo) e sua irmã mais velha (Evelyn Hoffman), sozinhos em casa. O menino espera ansiosamente pelo retorno da mãe, mas a história dá a entender que talvez ele nunca mais a veja. É um curta mais intimista, com narrativa lenta e fotografia (bem) escura. O som foi destaque, tanto que recebeu o prêmio de Edição de Som para o Gogó Coletivo.

SÓ SEI QUE FOI ASSIM

Produzido como trabalho de conclusão de curso da Universidade Federal de Pelotas, Só Sei que foi assim é simplesmente sublime. A criatividade da narrativa, atrelada ao traço dos personagens, misturada à sensibilidade do tema do autoconhecimento foi uma junção perfeita. A escolha deste curta como prêmio do Júri da Crítica foi unânime (eu sei, pois eu estava no júri, ao lado do jornalista Roger Lerina e do realizador Giordano Gio) e a escolha desta animação como a melhor do ano foi a coroação merecida de um trabalho imaginativo e tremendamente original. O fato da protagonista perder partes do corpo, sentindo-se incompleta, é genial.

KEREXU

Um dos poucos curtas na competição com história pregressa em outro grande festival – no caso, o É Tudo Verdade – Kerexu é um trabalho de observação de Denis Rodriguez e Leonardo Remor. Os cineastas acompanham o processo de produção de cerâmica feito pelo povo indígena guarani, desde a coleta da argila até sua queima artesanal. A direção de fotografia é assinada pelos dois e é um dos destaques do curta. A escolha de não legendar os diálogos das protagonistas nos coloca no papel de observadores também, precisando confiar mais nos olhos para compreender o que se passa na tela. Por isso, a comunicação com o público pode ser prejudicada.

BUDAPEST_V4_FINAL2

Um dos mais curiosos curtas da mostra, merecia algum louro pela criatividade e ousadia. Em uma viagem a Budapeste, Gabriel Motta resolveu fazer um curta aparentemente estático. Sua câmera parada registrando pontos turísticos da cidade poderia ser banal. Mas os diálogos que ouvimos nos mostram a história do final de um relacionamento. Quando pensávamos que tudo estava acabado, uma surpresa do roteiro nos coloca em uma trama metalinguística que dá maior brilho ao curta. Talvez tenha maior dificuldade em se comunicar com o público pelo seu lado experimental, mas é um filme que pode se dar muito bem em festivais com pegada mais autoral.

É ASSIM QUE VOCÊ PARECE

Produzido como trabalho de conclusão do curso de Realização Audiovisual da Unisinos, este curta de Pedro Valadão foi um dos melhores vistos nessa última safra vindos da Universidade de São Leopoldo. Acompanhamos um velho senhor (Clemente Viscaíno) solitário, com dificuldades de se conectar com outras pessoas, e um jovem rapaz (Rodrigo Grings), com problema parecido. O roteiro tem algumas boas surpresas, mas o real destaque é a cena no telefone de Clemente. Não à toa, o ator recebeu seu prêmio – o segundo seguido, depois de tê-lo conquistado no ano passado com O Grito.

VERANEIO

Daquelas coincidências que acontecem, tivemos Clemente Viscaíno em dose dupla. Neste filme, porém, sua aura cômica e os trocadilhos reiterados são sua âncora. Sandra Dani está ao seu lado, uma atriz tão fantástica que até suas mãos (em um plano detalhe no início do curta) são expressivas. Na trama, um casal idoso está na praia e revela verdades à sua filha (Liane Venturella). A direção é do ator Nelson Diniz, contumaz participante da Mostra, estrelando inúmeros curtas, desta vez respondendo pelo trabalho atrás das câmeras. O filme, apoiado por financiamento coletivo, tem ótimos momentos, embora a mudança de clima seja um tanto brusca.

A PEDRA

Exibido duas vezes em Gramado – no dia da abertura, 16, dentro da Mostra Nacional e no sábado, 17, junto à Mostra Assembleia Legislativa de Curtas Gaúchos – esta bela produção dirigida por Iuli Gerbase tem como principal predicado a impressionante atuação de Ester Amanda Schafer, a garotinha que vai junto dos pais e do irmão para um passeio de rafting e, nesse meio tempo, vê parte de sua inocência ser levada junto das corredeiras. A trilha sonora dá o tom para a trama, ora aventureira, ora cheia de suspense, quase paranoica. Gerbase consegue dar bom ritmo à trama e filma muito bem em locais complicados.

LINHA TRAVESSÃO

Linha Travessão é um tour de force do jornalista Douglas Roehrs, que assina a direção, o roteiro, a direção de fotografia, de arte, a montagem, o desenho de som e até a trilha sonora. Pode soar estranho que alguém faça praticamente tudo em um curta, mas a história deste documentário é bastante pessoal. Rohers entrevista sua avó e sua família, com essas conversas se confundindo com a própria história da Linha Travessão, lugar onde boa parte de seus familiares ainda reside. O diretor consegue cativar o espectador com os personagens que mostra, ainda que sirva mais para o próprio encontrar suas raízes.

ÊLES

Roberto Burd comanda este curta-metragem com toques de Corra! (2017), ao falar sobre um adolescente que, ao veranear na praia sem os pais, descobre que a empregada da família, dona Ida, morreu subitamente. Ele tenta falar com seus responsáveis sobre a morte da mulher, que os serviu durante toda uma vida, mas não recebe muita atenção. Detalhe: a empregada era negra. O preconceito racial e o descarte rápido de alguém que não serve mais são alguns dos pontos nevrálgicos de Êles, que também se apoia em uma aura de suspense para nos mostrar que nem tudo é o que parece.

SONATA

Sonata é um trabalho de entrega de Janaína Kremer, uma das nossas mais talentosas e prolíficas atrizes do Estado. Desta vez, além de protagonizar o curta, ela assina o roteiro junto do diretor Felipe Diniz. Na trama, uma atriz em crise, ensaiando para um novo personagem, decide sair, mas a noite lhe guarda algumas surpresas. O tom naturalista que Diniz emprega no filme, além de suas óbvias referências ao nosso Brasil atual, cheio de preconceito, são pontos positivos. Assim, claro, como a atuação de Kremer, que segura um plano-sequência extenso e bem fechado em seu rosto, em uma performance que lhe valeu o prêmio de atuação do ano.

STARDUST

O entusiasmo com que a equipe de Stardust apresentou seu filme no palco do Palácio foi contagiante, embora o material final tenha deixado um tanto a desejar. A ideia de conceber uma trama espacial, de ficção científica, é ótima e o visual do curta é arrojado o suficiente. No entanto, ao se levar a sério demais, o filme perdeu um pouco o brilho. Os figurinos são ótimos e a maquiagem também acerta ao dar feições extraterrenas ao personagem Zorax. A ideia é que esse curta seja o pontapé inicial para um projeto maior. Esperamos que eles consigam seguir, até para aprimorar a produção e aparar algumas arestas.

TEMPESTADE E A JANELA DE PAPEL

Existe uma velha máxima que não há maior crítico de nossas vidas do que nós mesmos. Em Tempestade e a Janela de Papel, Viviane Locatelli expande esse conceito de forma intensa. O abuso moral pela qual sua protagonista passa durante o curta já seria revoltante por si só. Mas quando nos adentramos na trama e percebemos as sutilezas do roteiro da cineasta, tudo ganha um novo escopo. Bem produzido, com fortes matizes não só na história, mas também na fotografia, o curta-metragem de Locatelli parece ter sido um processo difícil para a jovem diretora, que confessou no palco do Festival ter demorado a ficar em paz com o material.

DIA DE MUDANÇA

Dia de Mudança é uma crônica do momento em que a eleição de 2018 foi definida. O ano passado foi difícil para Boca Migotto (assim como para muitos brasileiros). O personagem de Nelson Diniz serve como um alterego para o diretor, que imagina como seria o diálogo com sua mãe naquela noite. Sandra Dani, como sempre uma monstra em tela, é a atriz perfeita para esse embate de frases pessimistas sobre o nosso futuro. Muito bem dirigido, econômico na decupagem, mas interessante na forma como se desenrola a história, calhou de ser o melhor curta de ficção comandado por Boca e sua Teimoso Filmes.

A MAIOR LOCADORA DO MUNDO

Existe um ótimo curta pronto para ser produzido a partir deste A Maior Locadora do Mundo. Com apenas três minutos de duração, esse parece ser um teaser para algo maior. Afinal de contas, assunto não falta. Em Porto Alegre, uma locadora que ainda resiste aberta, cheia de fitas VHS e DVDs (a maioria pornô), se autointitula a maior do mundo. Hilton Zilberknob, o dono do estabelecimento, é um personagem ótimo, sujeito que comenta com saudável naturalidade sua apreciação pelo serviço. Mesmo sendo curto demais, o filme de Matheus Mombelli tem o predicado de encontrar esse ótimo case. Basta saber explorar um pouco mais o assunto.

BUITENLANDERS/ESTRANGEIROS

Assim como Linha Travessão, Buitenlanders é um trabalho no qual o diretor realiza a maioria das funções atrás das câmeras. Neste caso, Cássio Tolpolar, conhecido pelo documentário em longa-metragem Mamaliga Blues (2014), assina direção, roteiro, direção de fotografia, montagem, produção executiva e desenho de som. Com apenas 5 minutos, Tolpolar propõe um olhar estrangeiro sobre Porto Alegre com momentos de certo nonsense – você vai se lembrar da citação a John Lennon pelado. O som da narração carecia de um maior cuidado. Um mergulho mais extenso naquele cenário faria bem ao filme, que acaba tão logo começa a interessar.

WHO’S THAT MAN INSIDE MY DOOR

Nem precisava ser uma alegoria com o momento atual do Brasil para ser assustador. Mas Lucas Reis propõe esse paralelismo nesta história em que um garoto enxerga uma figura fantasmagórica em diversos cômodos de sua casa. O clima é tenso e Lucas comanda tudo com aparente facilidade. Cristian Verardi se transforma na versão brasileira de Doug Jones (de A Forma da Água, Labirinto do Fauno), sendo o ator fetiche de diversas produções quando o assunto é travestir-se de monstro. A foto ao lado deixa claro que o papel foi feito com louvor. Esse curta com clima de pesadelo poderia render ainda mais, mas fecha bem com seus econômicos 10 minutos.

O CARNAVAL DE GREGOR

Este talvez seja um dos curtas mais arrojados tematicamente a serem exibidos na Mostra Assembleia Legislativa e, talvez por isso mesmo, tenha sido recebido sem o devido alarde. O filme trata de identidade de gênero, de abuso sexual, de apropriação cultural e racial, em apenas 20 minutos. A trama é um tanto confusa, é verdade. Um rapaz se veste de “nega maluca” e passa a ser enxergado como uma mulher. A partir dali ela sofre todos os problemas que uma mulher negra pode sofrer em seu cotidiano. Pungente e com uma cena na delegacia que nos causa desconforto pela atitude do policial, o trabalho de Kiwi Bertola merecia ter gerado mais atenção.

Textos extraídos da edição digital da ALMANAQUE21: Festivais, disponível em https://almanaque21.com.br/2019/08/17/festival-de-cinema-de-gramado/