Diário do Festival – Noite a noite, filme a filme
Por Daniel Feix
Os textos abaixo foram escritos ao longo deste 38º festival e depurados no último dia em que estive na Serra. Todos os 16 longas-metragens exibidos nas oito noites no Palácio dos Festivais, 15 em competição e mais o filme de encerramento, estão contemplados com comentários. Há ainda uma rápida análise da premiação, que afinal constitui a nona noite do evento – a última deste diário do festival. A ele:
Primeira noite
“Bróder!”, de Jeferson De (SP/Brasil), e “Enquanto a Noite Não Chega”, de De Beto Souza e Renato Falcão (RS/Brasil)
Gramado começou muito bem com o ótimo Bróder!, estreia do talentoso Jeferson De, 40 anos, no longa-metragem. Divulgado inicialmente como filme hors-concours, o longa acabou incluído na competição à última hora – o que fortaleceu a seleção da mostra competitiva. De cara se pôde perceber que era um favorito que abria o festival – inclusive por conta da exibição de Enquanto a Noite Não Chega, logo a seguir.
Ambos são imensamente diferentes entre si, na temática, no estilo, na própria realização – e também em seu resultado final. Bróder! tem uma força tão extraordinária que até seus defeitos acabam passando batido aos olhos do espectador. Já o longa de Beto Souza e Renato Falcão vislumbra o fim da vida com delicadeza, muito embora seja marcado por alguns excessos – de texto, atuações e, sobretudo, música.
Adaptação de um dos mais festejados livros de Josué Guimarães, Enquanto a Noite Não Chega narra a espera da morte por um casal de idosos (Miguel Ramos e Clênia Teixeira) num vilarejo em ruínas localizado no meio do pampa. Há poucos conflitos no filme: a aposta da dupla de realizadores é numa leitura poética da velhice, com suas recordações vagas e sua maneira contemplativa de enxergar o que os cerca. O melhor do projeto é a sua concepção visual – alguns planos rodados com câmeras digitais de tecnologia 4K (o dobro da resolução da HD) são muito bonitos e fazem com que o filme desponte desde já como um candidato ao Kikito de melhor fotografia.
O pior é o seu sentimentalismo exacerbado, sublinhado pelos diálogos às vezes muito literários, pela trilha sonora quase onipresente (assinada pelo músico Antonio Villeroy) e pela reiteração de planos – as imagens dos trilhos de trem, do rosto de sua filha caçula e do filho morrendo na guerra são repetidas pelo menos quatro vezes cada uma em suas recordações.
Bróder!, ao contrário, narra o reencontro de três amigos de infância (Caio Blat, Jonathan Haagensen e Silvio Guindane) apostando num registro naturalista de imagem e texto. Capão Redondo, localidade da periferia paulistana onde a ação se passa, surge praticamente sem filtros e, por isso mesmo, em toda a sua complexidade. Os personagens são ricos e vivenciam dramas cotidianos representativos de uma realidade que parece tudo – menos simples.
A presença de Cássia Kiss como a mãe do desajustado protagonista (Blat) e a caracterização um tanto cômica do jogador de futebol que se deu bem na vida e mora na Espanha (Haagensen) são alguns dos muitos pontos fortes de Bróder!. A grande atuação, no entanto, é mesmo de Caio Blat. O uso de gírias e a agressividade de seu comportamento vão ao limite do naturalismo, sugerindo leituras às vezes nem sempre familiares – mas muito estimulantes – para o público que for vê-lo nos cinemas quando da sua estreia no circuito, prevista para novembro.
Segunda noite
“Ojos Bien Abiertos: Un Viaje por la Sudamérica de Hoy”, de Gonzalo Arijón
(Uruguai), e “180º”, de Eduardo Vaisman (RJ/Brasil)
Palácio dos Festivais movimentado como raramente se via num segundo dia de festival. A extensão do evento, que incorporou um fim de semana a sua programação, já podia ser avaliada como positiva na noite de sábado, com a exibição do terceiro longa brasileiro e do primeiro latino-americano em competição. Pena, no entanto, que o público seguiu prestigiando pouco os filmes exibidos: o movimento dentro da sala de cinema parece cada vez menor, se comparado à agitação do lado de fora.
Na tela, pode-se dizer que foi decepcionante a abertura da competição latina. Ojos Bien Abiertos: Viaje por la Sudamérica de Hoy alinha-se aos documentários políticos que marcam a fase mais recente da produção do argentino Fernando Solanas, que aliás apresentou La Última Estación na mostra competitiva de Gramado no ano passado. O diretor Gonzalo Arijón até tem habilidade narrativa para um encadeamento lógico de sua linha de raciocínio, no entanto, não possui a capacidade de Solanas no que diz respeito à forma de estruturação de seus planos e sequências.
Ojos Bien Abiertos é o documento de, como diz o subtítulo do filme, uma viagem do documentarista pela América do Sul reconfigurada após a chegada ao poder de uma nova geração de líderes esquerdistas – de Lula a Evo Morales.
Traz registros de passagens por diversos países intercalados com depoimentos do grande escritor uruguaio Eduardo Galeano, cuja iluminação faz o filme crescer, mas, em contrapartida, direciona o raciocínio do espectador, comprometendo sua liberdade para imaginar e fruir aquilo que vê na tela.
Arijón parece registrar a realidade como quem apenas quer comprovar teses preconcebidas, a exemplo do uso que faz das imagens de protestos contra o presidente brasileiro para dizer que Lula é contestado pelo povo, o que contraria todas as pesquisas de popularidade divulgadas no país. 180º, enquanto isso, sofre de algo oposto: o longa de estreia do carioca Eduardo Vaisman é uma espécie de brincadeira de gato e rato com o espectador, que oferece armadilhas e esconde o jogo sempre que o público se “aproxima” da história.
A trama, contada com diversas idas e vindas no tempo, é a de um triângulo amoroso (Malu Galli, Eduardo Moscovis e Felipe Abib) que envolve três jornalistas. Um deles (Abib, o mais jovem) publicou um romance de grande sucesso tendo como inspiração uma enigmática caderneta que vai parar em suas mãos por acaso. Se não parece inverossímil que tal objeto é capaz de justificar a criação de um best-seller, e não parece, é no mínimo contestável o fato de que seu simples conteúdo, que inclui uma lista de supermercado e outras ideias esparsas que vão se revelar apenas na parte final do filme, desencadeie todo o enrosco que se vê durante os 85 minutos do longa.
A roteirista Claudia Mattos criou uma trama indiscutivelmente bem amarrada e o jovem Vaisman tirou de seu trio protagonista, especialmente de Malu Galli, atuações satisfatórias. Mas, se o objetivo é fazer o público se emocionar com o drama sentimental dos três, como o diretor indicou em seu discurso de apresentação do longa, no Palácio dos Festivais, não se pode dizer que é bem-sucedido. 180º é cerebral demais – e envolvente de menos. As comparações com algumas histórias dos escritores Paul Auster e Julio Cortázar, sobretudo com a obra-prima deste último, O Jogo da Amarelinha, citados no debate acerca do filme, na manhã seguinte à exibição, justamente por isso, não procedem.
Terceira noite
“La Vieja de Atrás”, de Pablo Meza (Argentina), e “O Último Romance de
Balzac”, de Geraldo Sarno (RJ/Brasil)
Foi apenas o terceiro dia, mas já se configurava ali um candidato a um dos melhores momentos de Gramado 2010. O drama argentino La Vieja de Atrás deu brilho à mostra competitiva de longas estrangeiros do festival – muito embora seja um filme interessante justamente por sua abordagem crua, radicalmente naturalista da relação entre uma mulher aposentada solitária (Adriana Aizemberg, candidatíssima ao Kikito) e um jovem pobre que veio do interior para Buenos Aires para estudar Medicina (Martin Piroyanski).
Falar sobre sua personalidade é tirar um pouco do prazer de assistir ao filme, pois a protagonista vai se revelando em todas as suas idiossincrasias indicadas pelo título (algo na linha “a velha do passado”) a partir do estreitamento dessa relação. Eles são vizinhos. Se conhecem quando ela oferece sua casa para ele morar, pois não está conseguindo pagar o aluguel na cidade grande. O que a mulher tem a ganhar com isso, por mais banal que seja, também só vai ficar bem claro apenas na parte final – o que nos leva ao maior “problema” do longa: exigir uma certa predisposição do espectador para as histórias mais intimistas, conduzidas em marcha lenta.
Quem se dispõe sai da sessão plenamente recompensado. A “vieja” é descoberta pelo espectador por meio do olhar do garoto, numa dialética que além de ser naturalmente riquíssima tem seu impacto aumentado pelo caráter realista empregado pelo jovem diretor Pablo Meza (de Buenos Aires 100km). La Vieja de Atrás praticamente não tem música incidental. Sua fotografia é desprovida de qualquer filtragem, assim como seus cenários – interiores e exteriores. Nem parece se tratar apenas do segundo longa-metragem do realizador, tal a maturidade como que são articulados todos os elementos da linguagem cinematográfica, tal a sua capacidade de arriscar – e, ainda assim, não perder a mão.
Já o documentário O Último Romance de Balzac chama a atenção pela curiosidade que desperta. Realizador do histórico Viramundo (1968), o veterano diretor Geraldo Sarno investe aqui num tema tão interessante quanto
árido: o livro que o grande escritor teria nos legado após a sua morte, Cristo Espera por Ti, por meio de sessões de psicografia com o médium Waldo Vieira, ex-assistente de Chico Xavier. Sarno o entrevista, ele e o especialista na obra balzaquiana Osmar Ramos, e ninguém mais.
Intercala seus depoimentos com encenações de outro romance de Balzac, A Pele de Onagro, com o qual o texto psicografado guardaria ligações. Elas, as encenações, seguem a cartilha do cinema mudo, em referência ao tempo passado da história. São o melhor do filme. Guardam humor e boa capacidade de expressão das intenções do diretor, sintetizando seu olhar original sobre a obra do autor – que na verdade é o grande propósito do longa.
O que impede Sarno de ser bem-sucedido é a falta de pluralidade de fontes que embasem suas teses, e a própria linha argumentativa – incapaz de trazer o espectador para dentro do filme, um pouco pelo estranhamento do tema, mas muito também pela falta de sustenção da argumentação que deveria convencer o público, que segue ou que não segue o espiritismo, de que a história toda pode ser, de fato, real.
A terceira noite de Gramado 2010 não terminou tão bem como começou, mas também deu o partida para uma vertente que, ao que tudo indica, deve ser marcante neste festival: a dos filmes que flertam ou apostam explicitamente no espiritismo ou, no mínimo, numa certa transcendência da vida. O tema vai voltar à baila durante esta semana, esta foi uma certeza do domingo no Palácio dos Festivais.
Quarta noite
“Mi Vida con Carlos”, de Germán Berger (Chile), e “Não se Pode Viver sem
Amor”, de Jorge Durán (RJ/Brasil)
A cicatriz deixada na sociedade chilena pelo golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet marcou o quarto dia de mostra competitiva. Se a ditadura do Chile assombra o tempo inteiro o documentário Mi Vida con Carlos, o drama Não se Pode Viver sem Amor também guarda relação com esse regime autoritário: o chileno Jorge Durán, diretor dessa produção ambientada no Rio, trocou seu país pelo Brasil depois que os militares tomaram o poder, em 1973.
Mi Vida con Carlos é uma espécie de carta filmada ao pai, que o diretor Germán Berger dedica a Carlos, militante de esquerda assassinado de forma cruel pela Caravana da Morte – operação do governo encarregada de eliminar oposicionistas presos e se desfazer dos corpos. A tragédia é familiar, abateu-se sobre os Berger de maneira devastadora após o crime, com exílios, perseguições, sofrimento, doença, suicídios registrados nos diversos núcleos formados por parentes próximos ou mais distantes, mas o cineasta consegue transformar o tema pessoal em algo universal ao alertar para a urgência de colocar o sombrio período ditatorial e seus personagens sob o julgamento da história.
O filme é comovente, e a ideia de apresentá-lo como uma conversa íntima direcionada ao vulto de Carlos, que morreu quando Germán ainda era criança, torna-o ainda mais envolvente. Também há um certo requinte na composição de planos e nos movimentos de câmera, que traduzem em imagens sensíveis e impactantes toda a melancolia dos relatos. O problema é que o diretor frequentemente passa do ponto e esbarra em excessos – em sequências como a dos tios lendo uma mensagem no túmulo do irmão.
Mi Vida con Carlos foi o terceiro longa latino exibido em Gramado, o segundo documentário de forte carga política. A seleção nacional, até aqui, em compensação, faz evidenciar um gosto da comissão de seleção pelos dramas que fogem às escolas mais clássicas e realistas de roteiro: apresentado dois dias após a exibição do quebra-cabeças de 180º, Não se Pode Viver sem Amor é igualmente intrincado e ainda mais fantasioso que o filme de Eduardo Vaisman.
Jorge Durán escreveu títulos como Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia
(1977) e Pixote, a Lei do Mais Fraco (1981). Neste que é seu quarto longa na direção, repete a parceria de É Proibido Proibir (2007) com a roteirista Dani Patarra. Ousa mais do que no filme anterior – o que acabou sendo fatal para o projeto.
A trama acompanha intercaladamente diversos personagens até seus destinos se cruzarem na véspera do Natal, no Rio de Janeiro. Destinos é a palavra mais adequada mesmo: o diretor aposta numa série de acontecimentos improváveis buscando preparar terreno para registrar, ao fim, a ocorrência de um milagre natalino – algo que transcende a ideia de limitação da vida, o que permite alinhavar o filme aos dois documentários de Gramado que exploram o tema do espiritismo, O Último Romance de Balzac e O Contestado – Restos Mortais.
Durán pagou o preço do risco máximo: parte da plateia no Palácio dos Festivais riu incrédula no final de Não se Pode Viver sem Amor. Se isso aconteceu foi porque as coisas não funcionaram como o realizador pensou.
Culpa menos do roteiro, cujos problemas estão nas elipses e passagens de tempo que confundem o espectador e não o ajudam a adentrar no universo contraditório, porém humano dos personagens, e mais, muito mais que isso, de uma direção de cena hesitante – que acentua de maneira irreversível essa dificuldade de envolvimento do público.
Quinta noite
“História de un Día”, de Rosana Matecki (Venezuela), e “O Contestado –
Restos Mortais”, de Sylvio Back (RJ/Brasil)
Além da primeira das três homenagens prestadas por Gramado 2010 – o troféu Oscarito para Paulo César Pereio, recebido com um discurso relativamente suscinto para um cinema pela primeira vez lotado -, o quinto dia no Palácio dos Festivais reservou ao público uma amostra da riqueza da linguagem documental. Se em O Contestado – Restos Mortais Sylvio Back seguiu uma abordagem tradicional do gênero, intercalando entrevistas com registros iconográficos de pesquisa, em História de un Día a venezuelana Rosana Matecki adotou um procedimento bem diferente – mais contemporâneo e melhor sucedido que o cineasta catarinense.
Com a câmera muitas vezes parada, planos longos e sem falas, História de un Día observa 24 horas na vida de camponeses da Venezuela. Há apenas música incidental a dialogar com os sons ambientes, o que remete ao belíssimo Suíte Havana, premiado em Gramado em 2004. Como no filme cubano de Fernando Pérez, o espectador é convidado a construir ele próprio a narrativa a partir do que vê. A diretora se contém: não interfere no que se passa diante da câmera, mantendo uma postura radicalmente passiva que só faz instigar a reflexão e enriquecer esse exercício do público.
Rosana rodou História de un Día durante um ano, o que significa dizer que usou a montagem para rearranjar as imagens de modo que o tempo fílmico ficasse bem diferente do tempo real. O problema do filme, no entanto, é outro – até porque a manipulação da realidade não é por si só passível de condenação. O que acontece é que o conjunto de dramas apresentados não alcança a mesma emoção, por exemplo, de seu correspondente cubano.
De todo modo, o título venezuelano é uma das boas surpresas do festival, até porque fora exibido na mesma edição em que o longa de encerramento é Ex Isto, de Cao Guimarães – o que leva a concluir que o tradicional evento serrano está abrindo as portas para tentativas de renovação da linguagem cinematográfica e de aproximação com outras linguagens, como a das artes visuais. Surpreendentemente.
Já O Contestado – Restos Mortais, nova incursão do catarinense Back pela Guerra do Contestado 40 anos depois de abordá-la no drama histórico A Guerra dos Pelados (1970), consiste num extenso trabalho de pesquisa sobre o conflito que teve lugar entre Santa Catarina e Paraná entre 1912 e 1916 e envolveu disputa pela posse de terras, exploração por empresas estrangeiras e messianismo. Como é usual nos documentários do veterano diretor, o longa reúne muitos depoimentos de historiadores, escritores e jornalistas, cujas teses são cotejadas com as falas de pesquisadores diletantes e pessoas da região do conflito – muitas delas centenárias -, que relembram o embate a partir de recordações e experiências pessoais.
A multiplicidade de vozes, porém, é exaustiva – o filme tem nada menos que
155 minutos -, sobretudo porque a colegem de depoimentos segue um ritmo nervoso, em que os planos raramente têm duração de mais de 10 segundos. E porque, também, alguns relatos são reiterativos. O Contestado ainda carece de didatismo e imagens de apoio que contextualizem o ocorrido, o que é estranho em se tratando de um filme do diretor de Guerra do Brasil (1987).
Mas o longa possui um grande acerto: a inserção de cenas de médiuns em transe em meio aos depoimentos dos entrevistados, alegadamente incorporando espíritos dos cerca de 20 mil mortos do Contestado. As sequências têm forte impacto sobre a narrativa e funcionam como uma espécie de dramatização dos conflitos – sem que se esteja fazendo algo despropositado, afinal de contas, a guerra foi marcada entre outras coisas pelo misticismo exacerbado.
Pena que a decupagem e o encadeamento dos depoimentos sejam tão massantes:
se a sessão começou com o cinema cheio, rescaldo da homenagem a Pereio, terminou apenas com poucos gatos-pingados na sala. “Os curadores deveriam estar presentes nas sessões competitivas para ver este tipo de reação, ou de não-reação do público aos filmes selecionados”, balbuciou um crítico no setor ocupado por jornalistas, comentando o que acabara de ver e pondo o filme de Back em perspectiva diante dos outros títulos nacionais selecionados e exibidos até então no Palácio dos Festivais.
Sexta noite
“El Vuelco del Cangrejo”, de Oscar Ruiz Navia (Colômbia), e “Ponto Org”,
de Patrícia Moran (SP/Brasil)
A inferioridade da seleção de longas nacionais diante da seleção latina ficou ainda mais evidente com os filmes do sexto dia de competição – que também teve a homenagem à cineasta Ana Carolina com a entrega do Troféu Eduardo Abelin. Penúltimo título da mostra competitiva brasileira, Ponto Org foi exibido logo após o impacto provocado pelo ótimo filme colombiano El Vuelco del Cangrejo. Não podia ter sido pior – para o cinema nacional.
El Vuelco del Cangrejo – algo como “a reviravolta do caranguejo” -, de Oscar Ruiz Navia, foi até então talvez o grande filme de Gramado 2010. Premiado em diversos festivais internacionais, inclusive com o prestigiado prêmio da Federação Internacional dos Críticos de Cinema em Berlim, transporta com sutileza para uma pequena aldeia de pescadores negros na costa do Pacífico contradições e dilemas essenciais da sociedade colombiana contemporânea.
Rodrigo Vélez, em interpretação bastante contida, é o misterioso Daniel, andarilho branco que chega ao úmido e ermo povoado. O cotidiano de todos ali é monótono, mas vai se alterar com a visita do forasteiro e também com a espera da volta de barcos que foram levados ao mar para pescar. Há outro núcleo de conflito particularmente interessante: o dono de uma pousada mequetrefe, que é branco, explora o trabalho dos negros e insiste em colocar a música na frente de seu estabelecimento em um volume insuportável.
Essa música, bem como os sons de rádio e tevês que se ouvem no ambiente, e as paisagens desoladoras de um lugar naturalmente tão bonito, dão informações que aos poucos vão levando o espectador a entender a complexidade das relações que se estabelecem – sobretudo a sugestão de que Daniel pode na verdade ser um fugitivo do país. El Vuelco… opera sempre no âmbito sugestivo, e consegue, ainda assim, prender a atenção do público. O roteiro é um primor, com suas informações ponderadas e entregues aos poncos para o espectador. A composição de planos e sequências revela domínio pleno da linguagem cinematográfica. E a direção de cena é muito segura – apesar, ou em parte devido ao fato de todo o elenco, a exceção dos três atores principais, serem moradores das redondezas.
Ponto Org é praticamente o oposto disso tudo. Festejada por curtas como Clandestinos (2001) e Plano-Sequência (2002), a diretora mineira Patrícia Moran estreia no longa-metragem com este filme se mantendo fiel à proposta de hibridismo entre as linguagens do cinema e da videoarte – característica marcante da geração de realizadores de Minas que se destacaram nesta década, de Eder Santos a Cao Guimarães. Constrói sua narrativa fragmentada com imagens esteticamente diversas entre si, parte delas representativa do que três meninos de rua (Rafael Chagas, Thiago Araújo e Leonardo Salomão) teriam registrado com uma câmera de vídeo que carregam por São Paulo. Seu olhar aponta para a região do Minhocão, com toda a sua sujeira e overdose de urbanidade – plenamente contemplada na composição visual do filme.
A ideia é interessante, mas as interferências de pós-produção – inclusive de som, com seus ruídos praticamente onipresentes – são tão opressivas que tonteiam o espectador, além de impedi-lo de acompanhar a tentativa do elenco adulto (Teuda Bara e Flávio Renegado, sobretudo) de dar profundidade aos personagens da história. Patrícia Moran buscou poesia nessa sinfonia cacofônica da metrópole, mas errou ao tirar do público o tempo e o espaço necessários para depreendê-la. No curta-metragem, onde a transmissão dessa poesia se faz de maneira mais imediata, talvez tivesse funcionado melhor.
Sétima noite
“Perpetuum Mobile”, de Nicolás Pereda (México), e “Diário de uma Busca”,
de Flávia Castro (RJ/Brasil)
Diário de uma Busca teve a mais calorosa recepção do público no Palácio dos Festivais e, na manhã seguinte a sua exibição, o mais concorrido dos debates de Gramado 2010. O documentário em que a diretora Flávia Castro procura respostas para a misteriosa morte de seu pai, o militante gaúcho Celso Gay de Castro (1943-1984), cinco anos após a sua volta do exílio, elevou um pouco o preocupante nível da competição de longas nacionais.
Com o uruguaio Ojos Bien Abiertos e, sobretudo, o chileno Mi Vida con Carlos, que também narra a busca de seu autor por vestígios do desaparecimento do pai, Diário… compõe uma vertente marcante desta edição: a dos documentários que a partir de jornadas pessoais traçam o perfil de uma América Latina politicamente efervescente, ainda a se recuperar de anos de repressão e violência institucionalizada. Se Mi Vida… é um filme conclusivo, condenatório ao massacre comandado por Pinochet, no longa de Flávia Castro o que fica são, sobretudo, dúvidas.
A versão oficial aponta para o suicídio de Celso, o que contradiz a perícia, mas que faz sentido à medida que a pesquisa – que inclui entrevistas com parceiros como Flávio Koutzii e Marco Aurélio Garcia – indica que o militante estava deprimido diante do que considerava uma irreversível derrota ideológica. O que faz Diário de uma Busca grande é essa capacidade da cineasta de racionalizar o próprio drama e apresentá-lo em toda a sua complexidade, sem medo de usar o humor ou encontrar respostas desabonadoras.
Seu trabalho é, em certa medida, um ensaio sobre a psicologia do fim de um sonho geracional. Só não fecha a competição brasileira como favorito aos principais Kikitos porque Gramado 2010 teve Bróder!.
Já Perpetuum Mobile, bom filme mexicano exibido antes do documentário brasileiro, é o sexto longa do jovem Nicolás Pereda, que com apenas 27 anos já acumula uma obra prolífica alicerçada nas possibilidades de produção oferecidas pelas novas tecnologias digitais de captação e pós-produção. Sua inserção na mostra competitiva de longas latino-americanos foi uma bela sacada dos organizadores e curadores de Gramado, pois chama a atenção para esse tipo de filme – sempre alternativa para cinematografias periféricas como a brasileira e a latino-americana de uma forma geral – que pode abdicar de um maior requinte visual sem nem por isso ser esteticamente menos interessante.
Perpetuum Mobile acompanha em um registro próximo ao do documentário o cotidiano de Gabino (Gabino Rodríguez, favorito destacado ao Kikito de melhor ator na competição internacional), jovem que trabalha com um amigo em um caminhão de carretos na Cidade do México. O rapaz mora com a mãe e depara no trabalho com a agitada diversidade da vida urbana: gente que é despejada de casa, casais que se separam ou que se juntam, pessoas que se deslocam pela cidade sem muito propósito e de maneira errática. O mundo pulsa ao redor de Gabino – que no entanto não consegue sair do circuito medíocre de sua existência, sem conexão efetiva com a mãe, o irmão, o companheiro de trabalho ou a namorada, paralisado por uma espécie de inapetência existencial.
A grande ironia é que a estagnação se dá justamente com um jovem que trabalha com mudanças. Essa contradição, típica do mundo contemporâneo, funciona ao mesmo tempo como denúncia da acomodação jovem e como crítica do frenesi da vida moderna – cuja movimentação parece se dar muito mais no âmbito físico que espiritual. É uma pena, para o cineasta mexicano, que Gramado 2010 tenha apresentado longas latinos tão bons quanto La Vieja de Atrás e, sobretudo, El Vuelco del Cagrejo: não fosse esta forte concorrência, certamente levaria ao seu país bem mais Kikitos por Perpetuum Mobile – a despeito de todas as dificuldades e limitações de produção de seu longa de baixíssimo orçamento.
Oitava noite
“La Yuma”, de Florance Jaugey (Nicarágua), e “Ex Isto”, de Cao Guimarães
(SP/Brasil)
É exótico o concorrente vindo da Nicarágua, que encerrou a mostra competitiva de Gramado 2010, na sexta-feira à noite. Espécie de Menina de Ouro da América Central, conta a jornada de superação de uma jovem boxeadora no universo pobre do pequeno país, em meio a dificuldades familiares e conflitos típicos do processo de amadurecimento. A jovem Alma Blanco até seria forte candidata ao Kikito de atriz – não tivesse a concorrência de Adriana Aizemberg, de La Vieja de Atrás.
La Yuma (referência ao nome da protagonista) é o primeiro longa de ficção lançado na Nicarágua em 20 anos. A diretora é uma francesa radicada no país.
Quem apareceu para divulgar o filme foi a atriz principal, além de uma produtora e outro integrante do elenco. Os três se mostraram emocionados de trazer o filme ao Brasil, como quem estivesse fazendo história. Sua relação esporádica e não muito efetiva com o cinema, porém dotada de uma paixão notável pelo ofício, ficou perceptível não só no palco do Palácio dos Festivais, mas na própria tela.
É que La Yuma é um longa cheio de defeitos e de uma inocência escancarada a cada plano. Tem uma aura de descoberta do cinema, no entanto, que transparece aos olhos do público e é absolutamente encantadora. Parece que descobrimos, junto com toda a equipe do filme, todo o prazer que o cinema é capaz de nos reservar. Se não é suficiente para pôr o longa no patamar de El Vuelco del Cangrejo ou La Vieja de Atrás, a priori os dois favoritos na corrida dos Kikitos, ao menos é capaz de nos conceder aquele prazer reservado ao espectador que tanto buscamos quando nos dispomos a sentar no cinema para ver um filme.
Agora, a grande notícia do último dia de cinema em Gramado 2010 foi o filme de encerramento do festival. Ex Isto, mais novo trabalho de Cao Guimarães, e um dos melhores deste que é um dos grandes autores surgidos no país nos últimos anos, é um ensaio livremente inspirado em Catatau, que alguém definiu como o “livro-rio” de Paulo Leminski. Um filme tão interessante que deve ter feito o júri oficial lamentar que não estivesse em competição – aliás, esta é uma das grandes questões de Gramado neste e nos anos
anteriores: por que alguns filmes hors-concours, mesmo aqueles que pleitearam uma vaga na competição, como A Última Estrada da Praia, de Fabiano de Souza, foram inexplicavelmente excluídos da corrida dos Kikitos?
Ex Isto é um trocadilho que explica a jornada do protagonista, o francês René Descartes, em sua fictícia jornada de descoberta do Brasil.
Interpretado por João Miguel, em atuação visceral – de uma entrega, dedicação ao cinema ainda mais comovente, embora totalmente diferente, daquela vista em La Yuma -, o filósofo racionalista vai-se deixando contaminar pela cultura do país tropical, e perdendo crenças e se desfazendo de conceitos preconcebidos. A conjunção de belas imagens com uma trilha incidental às vezes de caráter épico dá ao filme um impacto gigantesco, e os trechos selecionados do livro compõem um conjunto que em diversos momentos toca o sublime.
É um trabalho difícil, mas que precisa ser visto. Gramado perdeu a chance de consagrá-lo com alguns Kikitos, chamando a atenção para uma obra que de fato pensa a linguagem do cinema em todas as suas possibilidades – não seria esta a função primordial de um festival?
Nona noite
A cerimônia de entrega dos Kikitos e algumas conclusões sobre os longas do
festival
E pensar que Bróder! estava sendo anunciado como hors-concours inclusive durante os primeiros dias do festival! A competição nacional foi vencida indiscutivelmente pelo melhor – posto que o filme de Jeferson De alcançou com facilidade devido a exclusão de Ex Isto da mostra competitiva. É de se pensar, inclusive, o quão árdua teria sido a tarefa do júri se Bróder!
tivesse sido premiado como melhor filme do Festival de Paulínia e, assim, seguisse com a exibição fora de concurso na Serra, conforme a programação inicial.
O júri oficial dos longas nacionais foi preciso inclusive nas pequenas invenções – que foram necessárias para reconhecer determinadas categorias que ficaram prejudicadas pela fraca seleção dos títulos nacionais em competição. O que ficou mal foi o erro da organização no anúncio dos vencedores do Troféu Cidade de Gramado. Diferentemente do que foi dito pelos apresentadores da cerimônia de premiação, algumas categorias técnicas premiadas não com os Kikitos, mas com este troféu, foram concedidas pelos júris oficiais de longas e curtas-metragens, e não pelo júri dos estudantes de cinema.
A confusão, obviamente, tem origem nessa bizarra divisão que determina que montagem, trilha sonora e direção de arte sejam contempladas com um troféu secundário, menos importante que o grande objeto de cobiça dos realizadores.
Ainda assim, no entanto, prêmios entregues pelo júri oficial. Por que isso?
Qual o propósito? São perguntas que os organizadores de Gramado devem se fazer.
Bróder! ganhou cinco prêmios: três Kikitos (melhor filme, direção e ator) e três Cidade de Gramado (montagem e trilha). A impressão que ficou foi de que saiu do Palácio dos Festivais consagrado, mas com apenas três prêmios entregues pelo júri oficial. Mal-entendido do qual a organização do festival poderia se livrar. Para a curadoria refletir ficou a inexplicável exclusão da competição, entre outros, do longa de estreia do gaúcho Fabiano de Souza.
A Última Estrada da Praia, que integrou a mostra não-competitiva Panorama, chegou a ser rasgadamente elogiado por um integrante do júri oficial – que lamentou não poder ao menos inclui-lo na pauta das conversas entre os jurados, visando a uma possível premiação.
Se o júri oficial dos longas nacionais não errou, o mesmo não se pode dizer dos latino-americanos. A entrega dos prêmios para os longas estrangeiros foi uma verdadeira salada. Os troféus foram pulverizados e ainda assim deixaram de contemplar o colombiano El Vuelco del Cangrejo, o melhor filme em competição em Gramado 2010 – o longa de Oscar Ruiz Navia só saiu da Serra com duas estatuetas, o prêmio da crítica e o do júri dos estudantes de cinema, ambos concedidos ao melhor filme latino da mostra competitiva.
Outro equívoco foi a divisão de Kikitos na categoria melhor ator – e a não-divisão entre as atrizes. O júri preteriu Adriana Aizemberg (de La Vieja de Atrás) em detrimento de Alma Blanco (de La Yuma), que também está bem, mas é inferior à argentina, e decidiu não preterir Martin Piroyanski (que contracena com Adriana no filme de Pablo Meza) ao favorito Gabino Rodríguez (de Perpetuum Mobile). Não faz sentido.
Reconhecer o talento do diretor Nicolás Pereda, deste bom filme mexicano, foi outra decisão ousada. Podia ter sido mais interessante, mas que também soa despropositada ao se pôr Perpetuum Mobile em perspectiva com El Vuelco del Cangrejo e La Vieja de Atrás.
Quanto ao festival como um todo, o que se pode afirmar é que, a despeito da irregularidade dos filmes, os resultados foram bons – sobretudo em sua proposta de extensão. A abertura numa sexta-feira, e não mais no domingo, possibilitou a realização do evento ao longo de dois fins de semana. É mais cansativo para quem acompanha a maratona do início ao fim, mas faz a cidade mais movimentada e dá ao festival uma efervescência que ele só conquistava, até o ano passado, em seus últimos dias.
Pena que essa efervescência não corresponda à movimentação dentro dos cinemas. Talvez esta seja a reflexão mais urgente para a organização como um
todo: por que o cinema fica vazio em praticamente todas as noites de festival? Será o preço dos ingressos? A qualidade dos filmes? O desinteresse dos turistas? É um pouco de tudo isso, na verdade – o que talvez determine que se imponha uma reflexão mais aprofundada sobre o próprio perfil do festival.
É preciso badalar Gramado – mas não só no tapete vermelho, como é tradição, e na tela de cinema, como vem sendo desde que Sérgio Sanz e José Carlos Avellar assumiram a curadoria, mas também na plateia do Palácio dos Festivais. Não se pode admitir que filmes em competição sejam prestigiados por menos de um terço da capacidade da sala e, talvez pior ainda, que os bons títulos da mostra paralela da tarde, cuja entrada é franca e que têm apelo, como é o caso do novíssimo argentino Daniel Burman (do ótimo Dois Irmãos), sejam exibidos para um público que ocupe 10% dos assentos do cinema.