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Publicado por em jan 28, 2019 em Artigos |

Mamãe coragem

Por Marcus Mello, texto publicado na revista Teorema Crítica de Cinema, nº 30, dezembro de 2018.

Em Benzinho, Gustavo Pizzi cria um retrato de família afetuoso, dominado pela presença hipnótica da atriz Karine Teles

Mamãe, mamãe, não chore
A vida é assim mesmo
Eu fui embora
Mamãe, mamãe, não chore
Eu nunca mais vou voltar por aí
Mamãe, mamãe, não chore
A vida é assim mesmo
Eu quero mesmo é isto aqui

Mamãe, mamãe, não chore
Pegue uns panos pra lavar
Leia um romance
Veja as contas do mercado
Pague as prestações
Ser mãe
É desdobrar fibra por fibra
Os corações dos filhos
Seja feliz
Seja feliz
Caetano Veloso/Torquato Neto (Mamãe, Coragem)

Ambientado em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, e tendo como personagens os membros de uma família de classe média baixa tão amorosa quanto barulhenta (um casal com quatro filhos de diferentes idades, mais a irmã da esposa e seu filho pequeno), Benzinho é um dos títulos mais tocantes do cinema brasileiro contemporâneo. Um drama repleto de empatia, que aposta na capacidade de diálogo e entendimento entre as pessoas, no poder dos afetos e na solidariedade.

Karine Telles

Karine Teles brilha em Benzinho

Apesar de seu lançamento ter coincidido com um momento histórico sombrio para o país, este segundo longa do diretor Gustavo Pizzi desperta no espectador o mesmo sentimento reconfortante e esperançoso provocado há exatos 20 anos pela descoberta de Central do Brasil (1998), de Walter Salles. Como Central, Benzinho é um daqueles filmes dos quais saímos com a alma lavada, de olhos marejados (sim, os críticos também choram), completamente seduzidos por seus “golpes baixos”. Não por acaso, filmes que se aproximam também pela habilidade de seus diretores em fazer uso dos códigos do melodrama e por contarem com duas protagonistas extraordinárias – Fernanda Montenegro em Central, Karine Teles em Benzinho. Vale sublinhar ainda que tanto Salles quanto Pizzi criaram histórias que se encerram com uma despedida entre “mãe” e “filho”, com uma das partes indo embora em um ônibus.

Mas deixando essa digressão inicial de lado, é com outro título de produção recente que Benzinho parece estabelecer um diálogo mais rico, inclusive pela trajetória semelhante cumprida pelos dois filmes: Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert. A exemplo do que aconteceu com sua colega Muylaert, Gustavo Pizzi também viu a carreira de seu filme começar pelo Festival de Sundance, e ambos tiveram sua primeira exibição em terras brasileiras no Festival de Gramado. Porém as coincidências não cessam aí, pois Benzinho e Que Horas Ela Volta? são dramas familiares que colocam a figura materna no centro do palco, compartilhando ainda o fato de contarem com a participação da atriz Karine Teles no elenco e conhecerem uma carreira internacional de sucesso, revelando uma enorme capacidade de comunicação com o público. Entretanto, se a mãe vivida por Regina Casé em Que Horas Ela Volta? representava a ascensão da classe C ao longo dos governos petistas, a Irene de Karine Teles retrata justamente um movimento contrário: o gradativo processo de pauperização de parcela da classe média nos últimos anos, após um período de relativa estabilidade econômica e avanços sociais. E esta é a principal questão a destacar aqui.

Embora o roteiro de Benzinho tenha como gatilho dramático o convite que Fernando (Konstantinos Sarris), primogênito do casal Irene (Karine Teles) e Klaus (Otávio Müller), recebe para jogar handebol na Alemanha, e Gustavo Pizzi construa sua narrativa em torno do impacto provocado por essa notícia no cotidiano da família, há um evidente subtexto político na trama, aspecto surpreendentemente ignorado por diversos críticos que se debruçaram sobre o filme (“desvinculado da atualidade política”, escreveu Eduardo Escorel; “um melodrama convencional e despolitizado”, disse Mario Sérgio Conti).

A protagonista de Benzinho é uma força da natureza, a mãe coragem que se desdobra fibra por fibra, sempre com os pés no chão, chamando à razão o marido sonhador, com seus projetos mirabolantes, claramente fadados ao fracasso. O filme descreve com precisão a perda de poder aquisitivo de parte significativa da população brasileira, acentuada após o golpe parlamentar de 2016, que jogou o país no abismo. Como tantas pessoas de sua classe social, a cada dia mais precarizada, Klaus e Irene perderam seus empregos ou viram seus pequenos empreendimentos naufragarem, se obrigando a recorrer ao mercado informal para sobreviver. Em sua batalha diária, Irene, com a ajuda da irmã Sônia (Adriana Esteves, excelente), vende quentinhas ou jogos de lençóis que pega numa fábrica na qual sonha trabalhar com carteira assinada e “ter um dinheirinho fixo todo o mês”.

Pela resiliência de seus personagens diante das agruras diárias, o filme de Gustavo Pizzi acaba se juntando a outros títulos do cinema brasileiro estreados em 2018, nos quais o afeto se impõe como possibilidade de resistir às dificuldades do mundo – Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans), Café com Canela  (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2017), Inferninho (Guto Parente e Pedro Diógenes, 2018), Tinta Bruta (Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, 2018), Temporada (André Novais Oliveira, 2018) –, apostando no poder transformador (ou mesmo revolucionário) da micropolítica na vida dos indivíduos.

Depois de uma estreia promissora em Riscado (2010), também em parceria com Karine Teles, Pizzi confirma as expectativas em torno de seu nome, exibindo um domínio na condução da narrativa que realmente impressiona. Hábil encenador, Pizzi demonstra conhecer a importância do papel desempenhado pelo espaço cênico na instauração de um universo cinematográfico convincente, capaz de contribuir para o desenvolvimento do filme. Nesse sentido, é notável a forma com que o diretor usa as três casas em que seus personagens se movimentam. Em primeiro lugar, temos a casa precária, em processo de desmoronamento, com rachaduras aparentes, problemas na parte elétrica e hidráulica e a porta sempre emperrada (obrigando seus moradores a entrarem e saírem pela janela), representando o presente dessa família que começa a se desfazer com a partida iminente de Fernando para a Alemanha. Em segundo lugar, a casa em construção no mesmo terreno, mais espaçosa e confortável, ilustra a crença em um futuro de maior prosperidade e estabilidade. E finalmente a casa da praia, símbolo de um passado ideal, relacionada à infância da protagonista mas também a um tempo em que Fernando era só seu, protegido dos apelos do mundo.

Outro aspecto a ser notado é a recusa a um realismo rasteiro por parte da direção, que não tem medo de se arriscar numa representação que dá ao filme um tom que o aproxima da liberdade estética dos desenhos animados ou das histórias em quadrinhos – impossível não lembrar aqui da recriação memorialística levada a cabo por Alison Bechdel em sua obra-prima Fun Home (2006). O quintal invadido por rãs, o menino que anda pelas ruas com sua tuba ou os personagens entrando e saindo de casa pela janela são apenas alguns dos elementos que escancaram a opção por esse registro não realista, causando um estranhamento que, embora seja rejeitado por alguns espectadores em função de sua “inverossimilhança”, é um dos pontos altos de Benzinho.

Também é um acerto o uso do formato 2.35, que a princípio seria menos adequado a uma história centrada em pequenos dramas familiares. Ao final, a tela larga acaba justamente destacando a grandiosidade desses flagrantes da intimidade dos personagens. Um exemplo é a imagem recorrente de Irene com seu primogênito nos braços, flutuando numa boia de borracha, a ilustrar lindamente a resistência dessa mãe afetuosa que hesita em deixar seu filho sair do ninho. Ou a sequência de abertura, que de imediato já nos apresenta todos os membros dessa família adorável, à beira de uma avenida movimentada. Diante de uma gigantesca piscina pré-fabricada, de mãos dadas, um cuidando do outro, eles se preparam para cruzar a rua, numa travessia que vai levá-los ao mar. Um instante de grande beleza e, ao mesmo tempo, um verdadeiro achado, pois se trata de uma imagem que sintetiza o espírito do filme, anunciando tudo o que veremos a seguir.

Ainda que tenha uma certa aparência de cinema argentino (impressão acentuada pela presença no elenco do ator uruguaio César Troncoso, como Alan, o marido abusivo de Sônia), Benzinho se coloca em um lugar bem mais próximo dos retratos familiares que nos habituamos a ver no cinema italiano. Pizzi consegue transitar com extrema naturalidade entre o drama e comédia, intercalando momentos tocantes com outros do mais puro humor, muitas vezes em uma única sequência – o que não é algo fácil de se alcançar. Este efeito pode ser observado na cena em que Alan tenta invadir a casa dos cunhados para falar com o filho e, ao ser contido com força por Klaus e Irene, termina colocando abaixo parte da parede da fachada. Toda a tensão inicial se desfaz rapidamente, e o espectador é aliviado por um acontecimento de inesperado efeito cômico, típico das comédias pastelão. Essa habilidade do diretor em alternar registros ajuda a explicar o poder de comunicação de Benzinho  com o público em diferentes países (o filme fez grande sucesso nos cinemas da Espanha e agora em dezembro estreia na França).

Finalmente, não se pode falar sobre Benzinho sem destacar a contribuição de Karine Teles. Como aconteceu em sua parceria anterior com Gustavo Pizzi em Riscado, além de ser a protagonista absoluta do filme, ela volta a assumir também a função de co-roteirista. O resultado, outra vez, é espantoso. Com sua beleza não convencional, Teles explode na tela, se afirmando como uma daquelas raras atrizes capazes de, em qualquer situação, roubar a cena. Seja como antagonista de Regina Casé no já citado Que Horas Ela Volta?, seja em uma pequena – e generosa – participação em um curta como Nada (2017), de Gabriel Martins, Teles tem a versatilidade de uma Anna Magnani, e não à toa vem colecionando prêmios ao longo de sua trajetória. Por razões óbvias, sua performance como Irene, a mãe coragem de Benzinho, justifica ainda mais a comparação com a lendária atriz italiana, celebrizada pela criação de figuras maternas exuberantes em filmes como Belíssima (Luchino Visconti, 1951) ou Mamma Roma (Pier Paolo Pasolini, 1962). A quem achar a afirmação exagerada, recomendamos um olhar atento para apenas um dos muitos momentos em que Teles exibe o seu virtuosismo em Benzinho: a sequência em que sua personagem aguarda a correção da prova que lhe garantirá o tão sonhado diploma no ensino médio. Em silêncio, o rosto em primeiro plano, sentada diante da professora, Irene espera ansiosa o resultado de sua nota, e nós espectadores somos simplesmente arrebatados pela emoção de testemunhar uma atriz em estado de graça.

 

 

(Texto originalmente publicado na edição de número 30 da revista Teorema, em dezembro de 2018)