O roteiro e o roteiro “casa pré-fabricada”: o caso de quatro filmes nacionais
por Ivonete Pinto
Assim como o cinema brasileiro, cujos filmes são subsidiados pelo estado através das leis de incentivo, pagam o preço de não poder criticar os poderes econômicos instituídos (incluindo o próprio governo, a Petrobras e o sistema bancário), ficamos presos a um compromisso “moral” de não encontrarmos grandes defeitos nos filmes brasileiros. Antes, porque eram tão difíceis de ser produzidos, agora, porque a exibição é tão difícil. Uma complacência com as condições desfavoráveis do meio, mas que limita a crítica.
E é comum uma certa complacência também para com roteiros ruins, já que estamos mais ou menos acostumados com a ideia de que no Brasil não há bons roteiristas, como se fosse uma doença congênita. Não temos bons roteiristas e ponto final. Seria preciso pensar, no entanto, que essa responsabilidade tem que ser dividida com os diretores, que sempre se colocaram “acima” de tudo e, nesta condição, vêem-se como as pessoas ideais para escreverem seus roteiros. Quando muito aceitam outros nomes para “ajudar” na escrita. A crítica tem uma boa dose de culpa nisso, pois ao analisar um filme, tem dificuldade de separar o que é roteiro e o que é procedimento do diretor. Texto, de mise-en-scène. Isto porque, justamente, não se separam os ofícios.
É claro que isto tudo se aplica a um tipo de cinema vinculado ao roteiro. Há quem crie o filme no set e recrie na montagem, como o caso de Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Karim AÏnouz e Marcelo Gomes. O efeito quase mágico deste filme tem relação com o fato de seu roteiro ter sido construído após a captação das imagens. As imagens é que emocionaram e conduziram o roteiro que nasceria futuramente. A questão é que nos atuais moldes de obtenção de recursos via editais, como é possível apresentar projetos sem roteiro? No caso de Viajo, os realizadores contaram com a sensibilidade dos jurados da Petrobras daquela edição, que avaliaram uma “ideia de roteiro”, um conjunto de temas que iriam ser explorados. Mas nem sempre isto acontece. É praticamente uma exceção na produção nacional. A regra é não correr riscos, o que leva a este cenário de casas pré-fabricadas, onde as adaptações literárias ainda são hegemônicas e, em função disto, dependem de um roteiro.
Não é de hoje que o Brasil sofre com a falta de bons roteiristas e tem inveja do bom desempenho do cinema argentino, atribuindo-se a esse sucesso, também, à qualidade dos roteiros. Leia-se tanto o cinema representado por Juan José Campanella, como o representado por Pablo Trapero e Lucrecia Martel. São diretores – principalmente os dois últimos – que atuam nos seus filmes como roteiristas de argumentos originais, em um país que criou sua primeira associação de roteiristas em 1910 (Sociedad Argentina de Autores Dramáticos) e em 1934, já incluindo o cinema, a entidade ganhou o nome atual de Sociedad General de Autores de la Argentina. O Brasil teve a sua primeira associação de classe só em 2000 (Associação dos Roteiristas Profissionais de Televisão, Cinema e Outras Mídias) e uma segunda entidade, (Autores de Cinema), foi criada somente em 2006.
O vínculo às adaptações literárias e a idiossincrasia cinemanovista da ideia na cabeça e a câmera na mão, criaram uma cultura que despreza o roteiro original. A crítica convive com isto como se fosse natural, um traço orgânico do cinema nacional. Reclamar até se reclama, mas apenas da fragilidade de construção dos roteiros, raramente da falta pura e simples de roteiros originais. Desconfia-se até que no Word já exista um atalho para a frase: uma adaptação do livro tal. Vejamos o caso de quatro filmes lançados em 2010, todos com temáticas envolvendo adolescentes. Os Famosos e os Duendes da Morte, de Esmir Filho, As Melhores Coisas do Mundo, de Laís Bodansky e Antes que o Mundo Acabe, de Ana Luiza Azevedo,e Sonhos Roubados, de Sandra Werneck. Três são adaptações. Os Duendes… do livro de Ismael Caneppele; Antes…, do livro de Marcelo Carneiro da Cunha; Sonhos… do livro de Eliane Trindade. São quatro filmes de qualidade, que dialogam com uma faixa de público esquecida dos produtores/diretores, que são os adolescentes. Todo o frescor que emana deles vem dos procedimentos da mise-en-scène, mas o de O filme de Laís Bodansky, tem roteiro de Luiz Bolognesi (por acaso, sócio da Autores de Cinema), tem um frescor na raiz. Ele foi apenas inspirado na série de livros Mano, de Gilberto Dimenstein e Heloisa Prieto. Houve um investimento em pesquisa para construir o enredo e os personagens, nascendo também da pesquisa os diálogos.
O comprometimento da crítica com este problema congênito do cinema nacional produziria algum efeito? Talvez pouco, talvez o mesmo que o impacto da crítica na bilheteria de um filme: quase nulo. Mas ao menos a crítica – que também só agora começa a se organizar através de associações e sabe-se lá o efeito que isto terá no futuro – faria a sua parte e ouviria com menos culpa declarações de um Robert McKee, que quando veio ao Brasil afirmou serem nossos roteiristas preguiçosos e medrosos. Ele poderia acrescentar que a critica é omissa em relação a isto.
O Brasil ainda pratica o cinema tributário à palavra, mas os roteiristas não dão o devido tratamento técnico e criativo à palavra. Todos pensam que são Woody Allen e Ingmar Bergman. E não se trata de dominar ou não a narrativa clássica hollywoodiana, que isto se aprende no primeiro semestre de qualquer curso de cinema. Se trata de criar enredos de fato originais e contá-los de maneira também original, surpreendente. Se é para não ser surpreendido, melhor ficar em casa olhando TV.