Porto Alegre dos cinéfilos, uma homenagem aos cineclubes
Por Carla Oliveira, cineclubista, cinéfila e colaboradora na revista digital do Cineclube Academia das Musas e no fanzine Zinematógrafo, especialmente para o site da Accirs.
O Clube de Cinema de Porto Alegre, o cineclube mais antigo e tradicional da cidade, foi reconhecido pela Accirs (Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul) com o Prêmio Luiz César Cozzatti – Destaque Gaúcho 2018, por sua atividade ininterrupta nos últimos 70 anos. O prêmio é destinado à valorização da produção audiovisual e da cultura do Rio Grande do Sul.
Fundado em 13 de abril de 1948, pelo crítico e cinéfilo Paulo Fontoura Gastal, o Clube de Cinema é importante difusor da cultura cinematográfica e seu papel educativo é atestado em suas sessões semanais, nos debates entre seus associados e membros da comunidade presentes. Ciclos de clássicos, produções contemporâneas, valorização do cinema brasileiro e gaúcho (em sessões especiais com a presença de diretores) são alguns de seus feitos. Dentre seus associados (um grupo, a princípio, eclético) emergem pesquisadores, críticos e, sobretudo, uma comunidade de apaixonados pelo cinema, que, em meio a tempos difíceis, resistem assistindo e conversando sobre filmes.
Meu ingresso no universo cineclubista, contudo, se deu, há pouco mais de três anos, no Cineclube Academia das Musas, dedicado à pesquisa e à difusão de cinematografias de diretoras mulheres, de todas as épocas e nacionalidades. Em meio às críticas à supremacia masculina em vários domínios do campo audiovisual, o cineclube se propõe a dar visibilidade às realizadoras. O Academia das Musas surgiu a partir de uma discussão levantada em um encontro do Cineclube Aurora, que reunia cinéfilos frequentadores da saudosa Sala P. F. Gastal (que era gerida pela Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre). Penso que Gastal, idealizador do Clube de Cinema, se alegraria ao saber que na sala batizada em sua homenagem, cultuada pela excelente programação, germinaram amizades cinéfilas, cineclubes e publicações (a Revista Aurora, o fanzine Zinematógrafo e a Revista Digital Academia das Musas são decorrências desses encontros). Foi lá, também, que aconteceu a sessão de lançamento do Cineclube Adélia Sampaio, concebido pelo núcleo Criadoras Negras RS, destinado à exibição e discussão da filmografia de realizadoras negras da diáspora.
No delicioso livro Quando éramos jovens – História do Clube de Cinema de Porto Alegre, Fatimarlei Lunardelli nos conta que a população porto-alegrense foi convidada a comparecer à sessão inaugural do Clube de Cinema de Porto Alegre, realizada no auditório do Correio do Povo, pelas páginas do próprio jornal. Para a sessão inicial do Cineclube Academia das Musas (que teve lugar na Sala Multimídia da Cinemateca Capitólio, gerida pela mesma coordenação que foi anteriormente responsável pela Sala P. F. Gastal), o anúncio e o convite à população foram feitos através do Facebook, rede social da qual o Clube de Cinema também se vale hoje em dia. Respondi ao chamado e compareci à lotada sessão inicial, onde comecei a travar contato com um grupo heterogêneo.
O Academia das Musas é um cineclube aberto, prescinde da necessidade de associação. A curadoria é feita pelos participantes: pessoas com profissões distintas, de gerações diferentes (alguns, inclusive, ainda estudantes), que têm, em comum, o interesse ou paixão pelo cinema. Às vezes, sinto que o fato de ser médica e cinéfila causa alguma curiosidade. Para mim, esses mundos nunca estiveram em conflito. As chaves da boa prática médica são a observação e a escuta, de gestos e tons. Há o encanto da narrativa, o apreço pelo que é humano, o estudo da fisicalidade. Em exames, a busca por planos-detalhes, campos e imagens, através de fontes de luz, lentes, câmeras. Ou eu acabo vendo cinema em todas as facetas da minha vida. No livro da Fatimarlei, descubro, com satisfação, que pelo menos dois professores meus da Medicina também fizeram parte da história cineclubista porto-alegrense, através do Clube de Cinema. Um deles foi Moacyr Scliar, com quem já me identificava no afeto partilhado entre a literatura e a medicina. O cinema entra nesse combo e, na minha vida, foi o primeiro dentre esses amores a surgir.
Lembro do espanto sentido na primeira sessão de cinema da minha vida. Era bem pequena, aconteceu em uma viagem a Campo Grande, da qual a única lembrança que tenho é de Bernardo e Bianca. Seguiram-se outros filmes marcantes: E.T. no Baltimore (sala de cinema preferida da minha infância, vivida no bairro Santana), Janela indiscreta e Um corpo que cai, assistidos nesse mesmo cinema, quando eu ainda estava na escola (uma dívida que tenho com a minha irmã mais velha), Uma mulher sob influência, visto alguns anos mais tarde, em uma sala na mítica Rua Augusta, em São Paulo, ou a Mostra Circo Fellini, no Instituto NT de Cinema. Fora os incontáveis filmes assistidos em outras salas de cinema, vistos na televisão ou escolhidos em videolocadora. Das salas de cinema porto-alegrenses, boas recordações tenho das antigas salas da Praça da Alfândega, do Ritz na avenida Protásio Alves, do Guion, dos cinemas da Casa de Cultura Mário Quintana, do Santander, da Sala Redenção (que hoje abriga sessões do Academia das Musas), do Cine Bancários, da inesquecível P. F. Gastal e da linda e indispensável Cinemateca Capitólio. Muitos filmes importantes foram também vistos em cinemas de shopping, é preciso dizer. E, em algum momento, a apreciação da sétima arte me levou às leituras de críticas, blogs, livros, onde eu buscava desvendar as histórias e os mistérios dessa arte que tanto me encanta.
A melhor das experiências cinéfilas, contudo, é o cineclube que propicia: a assistência conjunta de uma obra, em sala escura, acompanhada dos ritos clássicos de apresentação e debate com os amigos cineclubistas. No Academia das Musas, encontrei pessoas que iniciaram a sua caminhada pelo cinema em outras épocas de suas vidas, por outros filmes, algumas com gostos bem distintos dos meus. Juntos, lançamo-nos em busca de descobertas, filmes raros, melhores cópias. Apreciamos filmografias, revisamos filmes, fazemos listas, trocamos impressões sobre livros, catálogos, escrevemos artigos. Além das realizadoras e suas obras, foco da nossa pesquisa, admiramos também críticos e cinéfilos. E respeitamos e torcemos intensamente pelos outros cineclubes, nos alegrando com o mais que merecido reconhecimento do Clube de Cinema de Porto Alegre pelos sócios da Accirs. É coletivamente que a cultura cinematográfica se perpetua. Que bom que a cinefilia ainda encontra seus espaços em Porto Alegre.