Quebrar as embarcações
por Pedro Henrique Gomes
A Edição Especial da OHUN, que celebra os 5 anos Mostra de Cinema Negro de Pelotas, realizada em junho deste ano, trouxe um panorama curioso das formas e narrativas negras audiovisuais contemporâneas. Há um mundo em vias de ser evocado, convocado a participar de um registro convexo, historicamente fora do lugar, repleto de mistérios, paixões, subversões, alegorias, musicalidades, ritmos, mas que também está implicado em conhecidos (e apenas superficialmente assumidos como tal) rituais de violência espetaculares e assassinos que insistem em ferir os mesmos corpos. Nessa história toda, se há algo de simples é o olhar inacabado, incompleto e, paradoxal que seja, ingenuamente caridoso que é lançado diante de todo mal do mundo por meio de estruturas televisivas, discursos midiáticos e práticas cotidianas reais. O mundo, aqui, é o Brasil.
Mundo erguido de tal forma que não suporta, em suas bases de conhecimento e construções intelectuais, que se fale em raça e em racismo – exceto por meio de chaves estrategicamente voltadas a mover o campo do debate para a esfera individual, fragmentando lutas políticas concretas e emancipadoras. Em outras palavras, sempre se teve a quem e como reportar as agruras da vida, tidas como naturais, enquanto se tenta mudar algo candidamente. “Acabamos confundindo o sistema capitalista com o sistema solar”, como relata um rebelde personagem de Ricardo Piglia em O Caminho de Ida. Nesse sentido, o resgate mnemônico mediatizado não é suficiente para dar cobertura às demandas que os filmes selecionados para a OHUN exigem, cada um ao seu modo. Mas para onde eles apontam?
Os caminhos pelos quais a obra da cineasta e antropóloga Milena Manfredini percorre, apenas como exemplo, olha para os cantos, para os que resistem nas bordas e habitam um mundo que os assalta já antes do parto, mas busca também a centralidade que essas vidas têm na experiência cosmopolita contemporânea. Seus personagens já nasceram antes de nascer, conectados de tal forma a certa ancestralidade, literal e figurativamente, que possuem lastro no passado e no futuro. Dos Camelôs (2018; não presente na Mostra) cariocas ao Guardião dos Caminhos (2020), da figura de Arthur Bispo do Rosario em Eu Preciso Destas Palavras Escrita (2017) ao imaginário visual, artístico, filosófico e formativo proposto por De um lado do Atlântico (2020), o que seus filmes propõem é a execução de uma linhagem narrativa essencial, de ajustes estéticos precisos e fundamentais, de histórias recônditas que dissipam as abordagens movidas por tons de exotismo que fizeram parte da longa história do cinema mundial se configurar em relatos de aventura, conquista e exploração (já nos primeiros anos do cinematógrafo o homem tentava explorar e colonizar os habitantes da Lua…).
Sair da grande noite?
Manfredini faz um cinema que não é nada simples, palavra perigosa frequentemente utilizada para reduzir estética e politicamente as artes negras e africanas. Pode ser fácil, mantida certa distância dos seus objetivos e discursos, jogar a sensibilidade de seus filmes no colo da espiritualidade das religiões afro-brasileiras para resumir a análise, mas eles querem tocar, além disso, na materialidade da vida dos personagens que cobre, compreender os seus anseios e urgências. É por isso, justamente, que essas são vidas nascidas no passado e no futuro. É aí pode estar também uma pista para entrarmos em um filme como Deus (2017), de Vinícius Silva, que, para contar a história de uma mulher e mãe em luta para manter a vida em São Paulo, recorre a um registro realista (que faz pensar em Charles Burnett e André Novais Oliveira), consciente da inseparabilidade da tensão entre raça e classe nas dinâmicas sociais modernas. Semelhante percurso faz o filme Além da Fronteira (2021), de Alexandre Mattos Meireles, que narra a história difícil de um pai e sua filha na fronteira do Brasil com o Uruguay. A busca por trabalho para garantir vida digna aos filhos é, em suma, o corte político destes dois singelos filmes. Eles exemplificam, de forma mais (Deus) ou menos incisiva (Além da Fronteira), os sentidos das contradições sociais, econômicas e raciais que atravessam o Brasil impiedosamente. Mas, nas artes visuais, nenhum pensamento político existe no vácuo, separado de sua forma e discurso. Assim, ambos carregam, além de imaginários e experiências pessoais, vontade de fazer cinema, de fazer ficção, de remexer e reconfigurar as possibilidades narrativas, visuais e discursivas que são, precisamente, práticas coletivas. Ninguém faz cinema sozinho.
A ideia de coletividade, de laços familiares e vida na periferia de outros grandes centros urbanos é o que serve de fio narrativo para a história de Ensaio Sobre a Ausência (2018), de David Aynan, e para Perpétuo (2020), de Lorran Dias. De novo os vínculos de pai e filha: em Ensaio Sobre a Ausência, Rômulo vive em Salvador e, numa ligação telefônica, sua filha lhe pede uma boneca de presente e o questiona sobre quando a visitará novamente. A secura narrativa do filme de Aynan tem sua razão de ser ao encontrar, no plano final, o desfecho que concede ao espectador um gesto de pura beleza. Certas histórias precisam ser contadas assim mesmo, invocando didáticas e sensibilidades comuns para efetivarem a força do relato. São muitos Brasis aí dentro, e eles estão presentes também nos videoclipes Além do Tecido (2020), também dirigido por Alexandre Mattos Meireles, De Cesar a Cristo (2020), assinado por Zudizilla, Rasputines e Holotrópico, e $incera (2020), com direção coletiva de Cristal, MDN Beatz e Joana Souza.
Já em Perpétuo, a história se passa em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. A família (o pai, a filha…), a violência e a tecnologia da colonialidade sombreiam a ação. O filme de Lorran Dias, logo se nota, não separa a economia da política, fazendo de sua trama, seus personagens e seu território elementos centrais de uma história maior, por natureza não essencialista e que o título, a rigor, enuncia claramente. Embora não somente em torno da ideia de prisão, o que é perpétuo no filme é o que se quer detonar e implodir. Há, aqui também, um passado que já implica determinações sociais contra as quais será preciso sempre lutar para reverter, e reversão é, em Perpétuo, ruptura sistêmica.
O ar rarefeito
O mesmo Brasil de Sônia Santos, Márcia Maria, Gilberto Gil, Cátia de França, Luiz Melodia e do Trio Esperança é o país de Zózimo Bulbul, Zezé Motta, Milton Gonçalves e Grande Otelo, como mostra o documentário Tudo que é apertado rasga (2020), de Fabio Rodrigues Filho. Embora filme escolar, já revela maturidade na amarração do discurso e no uso de filmes de arquivo, recortando trechos, cenas e relatos de atores e atrizes negras no cinema brasileiro para descobrir, no próprio processo de pesquisa, a ausência de pessoas negras em tela ao longo dessa história. Ausência notável, presença radical: diante de tantos personagens incríveis e atores e atrizes talentosas, quais as justificativas para tão poucos corpos negros no cinema e, além disso, quais as histórias que esses corpos contam? Nesse caso, não é problema o fato de o filme já ter a resposta de antemão.
E se falamos em histórias e personagens incríveis, Joãosinho da Goméa – O Rei do Candomblé (2020), filme de Janaina Oliveira Refem e Rodrigo Dutra, dá uma história e tanto! Ele parte da narração do próprio Joãosinho ao contar capítulos de sua história, propondo um jogo interessante entre imagens de arquivo, oralidade, musicalidade e encenação. Se as transições entre o inventário arquivístico resgatado pelo filme e os atos performáticos não se conectam de forma tão orgânica, a voz e o discurso de Joãosinho ecoam a autenticidade plena de um artista em constante transformação e cheio de contradições e conflitos, como todas as pessoas. Carnaval, música, ritos religiosos, macumbas de travesti, manifestos e movimentos que apontam para vários lados confundem-se nos trabalhos de Castiel Vitorino Brasileiro (como Milena Manfredini, homenageada nesta edição da OHUN), artista que mergulha, como num transe, em um repertório rítmico e poético que também assume sua radicalidade estética.
Em seus filmes, em suas experiências instalativas e macumbeiras, que evocam/convocam/exploram a positivação espiritual Bantu, falando portanto de ancestralidade, memória, história, corpo, música, em suma, colocando no centro da tela a celebração deste tronco linguístico múltiplo (em última instância, transcontinental) e inimitável, é interessante notar essa radicalidade viva na intimidade das coisas. Isso está muito presente principalmente em Quarto de Cura (2018), filme curto repleto de imagens que partem da instalação, em que a própria narração, isto é, não exatamente a história contada e os modos de operação do narrador fílmico, mas a narração em seu sentido de uso comum, a entonação, as pausas, engasgos e sobressaltos da voz, a fluidez e a naturalidade com que as palavras viram mundo e suas imagens tiram “quem vê” de um lugar de conforto. Para se perder e se reconfortar, se for o caso, mas para fazer o pensamento correr, mover, levantar poeira, sair do lugar, destruir ideias puras e não pertencer a ninguém. Ou, como as palavras musicais e a fervura política que encerram a espécie de manifesto macumbeiro travesti que é Para todas as moças (2019), para quebrar as embarcações.