Revisão de Utopias Perdidas
por Adriana Androvandi
No documentário “Utopia e Barbárie”, o cineasta Silvio Tendler faz uma revisão da política e da economia no mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Com narração de Letícia Spiller e Chico Diaz, o filme traz imagens, vídeos e noticiários de época. O foco apresenta um viés da esquerda. Mostra como muitos sonhos comunistas e socialistas foram caindo ao longo de décadas para os que sonharam com aqueles ideais. O diretor levou 19 anos para realizar este longa-metragem, fazendo entrevistas em 15 países com protagonistas da história, como o General Giap, um dos estrategistas do exército vietnamita durante a Guerra do Vietnã, além de testemunhas e vítimas. Ele passa por fatos como a bomba atômica, o Holocausto, o ano de 1968, a Operação Condor, a queda do Muro de Berlim, até chegar à ascensão do neoliberalismo.
Tendler também aborda a história brasileira, quando entrevista ex-presos políticos da ditadura militar, jornalistas, filósofos e sociólogos que passaram pelos anos de chumbo e vivenciaram a abertura política. Do período da transição, nos anos 80, se destaca a constituinte em 1988, ao mesmo tempo em que se apresenta que, no mesmo período, na Inglaterra e nos EUA, as eras Margaret Thatcher e Ronald Regan, respectivamente, alteravam o cenário global, dando início ao chamado neoliberalismo. “Enquanto estávamos lutando pela abertura política, eles já estavam selando o rumo da economia mundial”, observa Tendler. Cenas hoje tragicômicas, como as de Collor pedindo ao povo “não me deixem só”, mostram o quanto o Brasil já passou por governantes com inúmeros desvarios.
Uma das atuais candidatas à Presidência, Dilma Rousseff, é uma das entrevistadas brasileiras. Tendler, questionado se preocupa-se com o fato de que isso pode dar motivos para que chamem seu filme de eleitoreiro, como ocorreu com o filme “Lula – O Filho do Brasil”, diz que não. “Escolhi Dilma pela sua história. Além disso, dou a ela o mesmo tempo de exposição do que dei para Ferreira Gullar, que pensa de forma contrária a ela”, explica o cineasta, argumentando que os dois manifestaram ao longo da história visões diferentes sobre a esquerda. “Procurei mostrar as razões de cada um.” Dilma se mostra nostálgica com o tempo em que os opositores eram sonhadores. Em contrapartida, Ferreira Gullar explica, por exemplo, porque não acreditava na luta armada para derrubar a ditadura brasileira.Para ele, os guerrilheiros não teriam como vencer o exército naquilo que ele tem de melhor, o aparelhamento e as estratégias de guerra. “Aqui não é Cuba”, também comenta ele sobre o tamanho do Brasil. No caso chileno, também acusa a esquerda de ter se dividido e deixado o presidente Salvador Allende isolado, por querer reformas muito rápidas.
Desta forma, o documentário de Tendler apresenta diferentes visões da esquerda através do olhar de pessoas que viveram os anos 60 e 70 e se engajaram de alguma forma contra as ditaduras. O documentário denuncia ainda que, em nome de muitos sonhos “igualitários”, houve verdadeiras chacinas em países como China e Cambodja, desacreditando os governos comunistas. Ou seja, Tendler mostra que houve erros tanto de líderes que se diziam da esquerda, como da direita, com exemplos de falta de democracia. A grande pergunta agora é: qual a nossa utopia atual? Temos alguma?
O filme também tem uma trajetória autobiográfica, em que o próprio cineasta mostra que ele foi uma pessoa que viveu em 1968, teve seus sonhos e suas decepções. “É um filme sincero”, define. Ele faz constantes referências a outros filmes dentro deu seu longa-metragem, como aos clássicos “Roma, Cidade Aberta”, “A Batalha de Argel”, além de entrevistar cineastas como Amos Gitai (Israel), Fernando Solanas (Argentina) e Cacá Diegues (Brasil), o que enfatiza seu apreço pelo cinema como forma de reflexão. É um filme que se torna uma aula de história, no seu melhor sentido. Seu ritmo ágil de edição não permite que seja enfadonho, até porque não esquece uma questão preeminente de vários momentos históricos, a emoção. É um filme que revisa uma época e suas gerações. Pela sua proposta reflexiva, pela sua pesquisa e argumentação consistentes é um dos filmes mais instigantes de 2010.