Rifle: frustração e falência do retirante das coxilhas
Por Danilo Fantinel, especial para o site da Accirs
Coração em chamas, mente inquieta, rosto sereno. Dione (Dione Avila de Oliveira) é assim, como um vulcão prestes a explodir na vastidão das coxilhas, irrompendo em meio ao silêncio e à calma que dissimulam sua fúria. Rifle, de Davi Pretto, mira esse homem instável como a pólvora ser induzido à ignição em um contexto degradante. Porém, quando Dione explode seu estrondo é bem menor do que o estrago causado por sua vida sem sentido nos campos ao Sul do Brasil.
O tema e a trama do filme roteirizado por Pretto e Richard Tavares são pouco agradáveis, assim como é desconfortável o cotidiano de vários segmentos sociais do interior gaúcho, atualmente comprimidos entre o poderio do agronegócio e a insegurança de um campo anteriormente idílico. Não muito distantes do cinema de fluxo, valorizando planos estendidos, sons e silêncios narrativos ou atmosferas cênicas como forma de imersão fílmica, a dupla de realizadores articula tipos locais para ecoar a falência do homem em sua terra. O recurso, porém, volatiliza a narrativa em vez de inflamá-la.
Juntando fragmentos, percebe-se Dione como um jovem ex-militar que fugiu de casa não se sabe quando, abandonando a mãe logo após a irmã ter feito o mesmo. Bom de gatilho, vaga de sítio em sítio tentando emprego até encontrar pouso no casebre de uma família liderada por um idoso criador de caprinos. Ainda que pouco articulado, Dione é grato pelo acolhimento que teve. Porém, o material ígneo do qual é feito entra em combustão quando o roubo de ovelhas e o assédio do agrobusiness passam a ameaçar as terras do velho.
Revoltado e impávido, o protagonista parte para o revide armado com frieza psicótica e violência assustadora, atitude cujos resultados trágicos o transformam novamente em um retirante das coxilhas, migrando por caminhos que o levam de volta ao seu passado errático.
Em boa parte de Rifle, Dione circula no vazio do campo para assegurar a terra e perder-se no vácuo da própria existência – quase levando consigo o público em uma enfadonha espiral de desinteresse. Entretanto, fotografia (Glauco Firpo) e som (Marcos Lopes e Tiago Bello) dão grandiloquência ao drama desse personagem calado, quase mudo, que melhor se expressa não com seu fiapo de voz, mas com uma arma de fogo e cano longo que sempre fala mais alto.
Dando destaque a planos extensos, Pretto, Tavares e Bruno Carboni (montagem) flexibilizam o espaço-tempo diegéticos ao omitir do espectador certos trechos narrativos que poderiam compor sequencias inteiras. Assim, criam lacunas que devem ser preenchidas pela imaginação das audiências. É o caso da busca de Dione por teto, cujo trânsito fica subentendido, ou mesmo a impactante cena que envolve Mariano, um dos que abriram sua casa ao protagonista.
O filme também permite o devaneio em momentos marcantes, como quando Dione delira com a visão da picape de estancieiros trafegando em chamas no breu da noite. Bela representação de um desejo ardente, a cena simboliza, sobretudo, o próprio coração incandescente e incontrolável do personagem. É justamente essa instabilidade flamejante que o leva à impermanência, expulsando-o de todos os lugares. Porém, se o teor explosivo que há em Dione não transparece facilmente à flor da pele, essa qualidade dinâmica também não se estende à narrativa do filme como um todo, tornando-o uma experiência mais próxima da linearidade apesar da violência latente.
Esse novo gaúcho a pé evidenciado por Pretto e Tavares, desfigurado em sua potência mítica, desnudado em sua impotência moral, atualiza o gaudério interditado na Porteira Fechada de Cyro Martins. Tal qual João Guedes, agricultor tornado miserável ao vender sua pouca terra ao latifúndio, Dione não tem onde cair morto. Ainda assim, se o João literário entra para o crime para dar de comer à própria família, o Dione cinematográfico comete delitos para extravasar frustração e falência.