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Publicado por em ago 27, 2023 em Artigos, Críticas, Festival de Gramado |

51º Festival de Cinema de Gramado: Pampa vazio, ameaçado, sempre em conflito – uma entrada e uma saída

Atualmente em cartaz nos cinemas, “Casa Vazia”, de Giovani Borba, havia sido selecionado para o Festival de Cinema de Gramado há um ano. Rodado em Santana do Livramento, já falava de um pampa ameaçado pela soja e tinha como protagonista um peão de estância que não vislumbrava mais opção a não ser cair no abigeato.

Em 2023, na 51ª edição do evento cinematográfico na Serra Gaúcha, dois dos longas concorrentes na mostra destinada às produções do estado também tiveram esse simbólico e complicado cenário ambiental, social e econômico para explorar.

“Céu Aberto” é mínimo, é singelo, é feminino, é delicado, é bonito. Uma diretora que segue os passos de uma adolescente criada na zona rural de Dom Pedrito (RS), filha de pequenos proprietários rurais. Elisa Pessoa começa a registrar o cotidiano de Andriele Rodrigues Soares a partir dos 13 anos.

Vamos lá: “Céu Aberto” poderia ser um longa simples, mas não é. Seria um documentário etnográfico, mas não é só isso. A potência das imagens escolhidas para sua abertura já deixa claro seu vulto: uma sequência de raios e relâmpagos no céu do bioma Pampa, um horizonte quase hipnotizador – faça chuva ou faça sol.

A artista visual carioca Elisa Pessoa já era fascinada pelo céu do local, suas cores, pela profundidade do horizonte e a melancolia do frio. Ela, que assina direção, roteiro, fotografia e montagem do filme, mora e trabalha em Dom Pedrito (RS) há sete anos, mas já não consegue sair da Campanha, pois não pode mais viver sem ver o Pampa.

A obra acompanha e explora as mudanças de comportamento da personagem, seus desejos e aspirações, até os 17 anos. As filmagens ocorreram entre 2016 e 2021, no lugarejo afastado de Banhado dos Anastácios e também na cidade, em contexto urbano.

Seguindo os rumos da garota, e através das conversas íntimas com ela, “Céu Aberto” atravessa temas como risco à memória da Campanha, o avanço das plantações de soja exterminando criadores de gado e vendedores de lã de ovelha, consequências econômicas e psicológicas do isolamento social imposto pela pandemia, patriarcado, machismo (Campanha não é lugar para menina) e indústria cultural (a adolescente fascinada pelos vídeos de maquiagem da internet já é um clichê dos nossos tempos atuais).

Foi necessária intimidade para Andriele “se soltar” frente à câmera, até ela gostar e esperar por filmar. Havia muito material visual e papos demais para editar desse tempo todo de convivência. “Céu Aberto” é um filme de montagem – que respeita o ritmo do ambiente que documenta – e um exemplo de ética no audiovisual.

É possível sentir apenas vendo o que está na tela que a realizadora igualmente respeitou o tempo e o que a sua protagonista estava “a fim” de colocar em pauta nos encontros. O longa é de Elisa, mas antes de tudo é de Andriele: ela “guiou” – pensando na tradução de roteiro para o espanhol – o que entraria na narrativa que tinha que ter a “sua cara”.

E pensando em identidade, a paisagem local é a outra personagem desta produção, sendo a entrada e a saída do espectador nela. Andriele é fruto deste chão, está ligada a ele, não consegue se desvencilhar dessa herança que lutou pra exercer.

A pampa e o pampa

Já “Sobreviventes do Pampa” é robusto, ambicioso em seu propósito de resgatar raízes, quase desolador ao abordar seu pano de fundo em perigo. Tem o diretor Rogério Rodrigues apresentando sua história pessoal logo no início e questionando: por que estamos apagando e destruindo a nossa própria origem?

Longa gaúcho financiado pelo edital Pró-Cultura RS de 2019, o documentário road movie “Sobreviventes do Pampa” – com a equipe a bordo de uma van – percorreu três mil quilômetros, de Porto Alegre a Alegrete, passando por Santana do Livramento, Uruguaiana, Bagé, São Borja, Quaraí, Dom Pedrito, Santa Maria, Rosário do Sul, Eldorado do Sul e Barra do Ribeiro. Tem reproduzidos quase 40 depoimentos gravados em 12 municípios do estado, para praticar uma “escuta ativa”, enaltecida pelos representantes das entidades participantes do projeto, com o objetivo de explorar as identidades sociais e ambientais do território.

A sua mensagem é que, no Pampa, se sobrevive em grupos, não sozinho. Quando se refere aos povos e ao bioma, o artigo é masculino. Mas a pampa feminina é a mãe terra, a casa afetiva, a origem nativa deste povo.

Apesar de ser bem didático quanto à história, geografia e questões identitárias do bioma, o mais belo do longa não está no discurso, e sim em suas imagens e seus sons. Vale mencionar os créditos desses quesitos: fotografia de Lívia Pasqual, trilha dos irmãos Ernesto e Paulinho Fagundes (com protagonismo do bombo leguero) e o desenho de som de Kiko Ferraz, com destaque para registros locais de ambiente que ajudaram a reproduzir também uma “paisagem sonora” dessa “casa” que precisa ser preservada.

Assim, embalado pelo vento e pelos ruídos dos bichinhos, o filme de Rodrigues também respeita seu “objeto de documentação”, o tempo de contemplação, da mirada, a admiração pela natureza e pelos animais.

O final do longa aposta em uma educação transformadora para os sujeitos do campo. Os entrevistados falam muito de conscientização para o futuro, acreditando em uma “poética do espaço” para preservação ambiental e da memória e uma espécie de prevenção do esquecimento das origens do gaúcho peão do Pampa.

O território é mais que a terra. “Nós, povos tradicionais, somos parte dele. A pampa é parte de mim”, diz Mariglei Dias, do Quilombo Rincão da Chica (Rosário do Sul). Um plano fechado em cada uma das pessoas que fazem o filme, que dão seus depoimentos sobre este chão. Rostos bem diversos entre si, mas uma única sensação de pertencimento. Andriele também poderia estar ali naquela sequência…

Texto de Carol Zatt
Crítica de cinema do Brasil de Fato associada à ACCIRS

Texto produzido a partir das reportagens para o Brasil de Fato:
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