51º Festival de Cinema de Gramado: Poesia que higieniza
A mostra de curtas-metragens gaúchos tem sido há um tempo uma atração à parte no badalado Festival de Cinema de Gramado. Vencida em sua maior parte a terrível fase da pandemia – prejudicial para produções com mais recursos, quanto mais foi para aquelas de baixo orçamento e menos experiência – os curtas produzidos no Rio Grande do Sul tornaram a tomar corpo e ganhar a devida estatura que merecem. Embora alguma desigualdade em termos de resultados finais, quando não aceitáveis deslizes técnicos, o nível dos 23 filmes concorrentes ao Prêmio Assembleia Legislativa de Cinema – Mostra Gaúcha de Curtas 2023 foi bastante satisfatório e, mais que isso, promissor.
Como vêm se adensando a cada ano, as temáticas antes “marginais”, como LGBTQIAP+, povos originários, capacitismo, xenofobia, entre outros, manifestam-se com potência junto aos realizadores. Caso de “Rasgão”, de Victor Di Marco e Márcio Picoli, que levou Menção Honrosa, em sua narrativa que trata da acessibilidade; ou “O Tempo”, vencedor de Melhor Trilha Sonora (Gabriel Araújo, Nina Fola e Malyck Badu) e Roteiro (Ellen Correa, também diretora), expositor de forma sutil de questões raciais e existenciais. Porém, o que mais chama atenção é o apontamento das lentes para uma visão poética do cinema, o que se obseva tanto no rigor formal quanto na liberdade estética.
A intencionalidade de um cinema de poesia, dentro daquilo que Pasolini ou Bressane servem de base, sustenta os curtas mais cativantes da mostra. Um deles é “Messi”, um pequeno documentário dirigido por Henrique Lahude e Camila Acosta, que traz o jovem Edu, menino pertencente a uma família moradora da cidade fronteiriça de El Soberbio, limite entre Brasil e Argentina, assistindo a um jogo das Quartas de final da Copa do Mundo 2022 em que o time do craque portenho jogava. A forma como esta tarde é contada, com suas sutilezas e percepções sensíveis, quase anulando a presença da câmera, fazem de “Messi” daqueles filmes aparentemente simples em realização, mas profundos em significados. Não à toa, recebeu o prêmio de Montagem, a cargo de André Berzagui.
Outro bom exemplo de poesia cinematográfica é o conciso e forte “Sabão Líquido”, merecedor de uma das principais premiações, a de Melhor Direção para a dupla Fernanda Reis e Gabriel Faccini. Na história, um rapaz estrangeiro é transportado ilegalmente para o interior do Rio Grande do Sul para trabalhar na falsificação de sabão líquido. Incisivo, o filme toca em questões sociais e políticas muito presentes no Brasil (e no Rio Grande, por supuesto), como o trabalho escravo, a informalidade, a xenofobia e, principalmente, o sentimento de impunidade que o pensamento fascista concede aos exploradores. Tudo numa construção narrativa sabiamente pontual e uma rica fotografia.
Ainda, impossível não citar nesta linha de entendimento poético o belo “Fiar o Vento”, Melhor Fotografia para a também diretora Mari Moraga com suas expressivas imagens e enquadramentos da Lagoa dos Patos e da ancestral arte de fiação com lã de ovelha; e o impactante “Centenário da Minha Bisa”, de Cristyelen Ambrozio. Feminino, profundo, reflexivo. Cinema de arte. O filme trata do caminho ficcional trilhado pela própria Cristyelen – mulher indígena e egressa da primeira turma do curso superior em Tecnologia em Produção Multimídia de uma instituição pública, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) –, que redescobre sua bisavó a partir de álbuns de família. Memória e
realidade se entrelaçam e se tensionam, num jogo intenso entre os elementos textuais, videoartísticos e sensoriais. Com muita assertividade, a Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS) concedeu-lhe o prêmio de Melhor Curta Gaúcho pelo Júri da Crítica.
De todos, no entanto, aquele que arrebatou público e crítica foi, de fato, o principal vencedor da mostra competitiva: “Concha de Água Doce”, de Lau Azevedo e João Pires. Certa unanimidade se deve, antes de mais nada, à qualidade do curta, seja em narrativa, seja na excelente montagem ou mesmo nas interpretações dos poucos personagens, uma delas o do ator Aren Gallo, que lhe rendeu o troféu de Melhor Ator. Sensível à questão da transsexualidade, o filme traz este tema como ponto central para desencadear uma travessia sem escalas no tempo físico ou emocional, o tempo que está dentro ou fora, o que se guarda no olhar ou na profundeza do mar.
A se ver pelo apuro técnico, criatividade e, principalmente, pela assertiva escolha por abordagens que aproveitem as possibilidades estéticas que o cinema suscita, há de se ficar bastante satisfeito com o que a audiovisual gaúcha seguirá promovendo depois de passar por provas de fogo nos últimos anos. Como outro concorrente da mostra de curtas traz, “As Ondas”, e tal como se bradou pelos corredores do Palácio dos Festivais durante os dias de evento, é de se comemorar os novos ventos da cultura brasileira com a entrada do atual governo. A atmosfera já se mostra muito mais respirável e alentadora depois de tanto enxofre empestando o ar. Viva o cinema – e viva a poesia – para promover essa necessária higienização.
Texto de Daniel Rodrigues
Crítico de cinema em O Estado das Coisas associado à ACCIRS