A melancolia do envelhecer (Chega de Saudade, 2007)
Por: Ivonete Pinto
Os dois anos de pesquisa para escrever o roteiro ficam evidentes em Chega de Saudade (Laís Bodansky, 2008). Tudo é tão plausível, que mesmo quem nunca tenha pisado em um salão de bailes cujo público principal é a terceira idade conclui que personagens, ações, diálogos, figurinos, cenário, tudo que aparece no filme faz mesmo parte deste universo. A mulher que, ainda bonita, não entende porque não encontra quem a tire para dançar; o homem que mente ser viúvo para justificar ir ao baile sozinho; as senhoras faceiras que mesmo sem par requebram-se a noite toda sozinhas; o garçom atento que carrega analgésicos no bolso; o aparelho para medir a pressão sangüínea disponível na cozinha; o senhor que ao trazer a esposa no baile precisa se explicar à amante. Uma infinidade de situações que, o próprio filme nos convence, são pertinentes nestes bailes.
Chega de Saudade é um mosaico da condição humana. E embora a diretora e o roteirista (Luiz Bolognesi) evitem fazer tipologia da velhice, não fogem à representação achatada dos problemas e sentimentos comuns às pessoas que passam dos 60 anos, (às vezes dos 50). Este pedaço da vida que o filme recorta circunscreve os pequenos dramas aquele espaço específico − o salão de baile − e talvez por isso tenha sido tão feliz: não tenta abarcar o mundo da terceira idade querendo dar conta de toda complexidade que significa envelhecer. Flui com naturalidade a colocação de problemas próprios da idade, como Alzheimer – a personagem vivida por Tônia Carreiro enfrenta o início da doença. E é claro que neste momento temos que lembrar de Longe Dela (Sarah Polley, 2007), um filme que tem o mal de Alzheimer como leitmotiv.
O motivo condutor de Chega de Saudade talvez seja a melancolia que ataca o ser humano quando ele se conscientiza que já viveu mais da metade da vida e que a morte passa a ser uma preocupação mais constante do que o foram casamento, filhos e carreira. Uma conscientização que pode acontecer em idades diferentes, dependendo das características físicas e psicológicas de cada indivíduo.
Por sinal, é arbitrária a referência a algum número neste sentido, e o filme acertadamente não faz menção a qualquer idade, mesmo que suspeitemos que mulheres como as vividas por Cássia Kiss e Clarice Abujamra não pertençam a mesma faixa etária de uma Tônia Carreiro. Todos estão encerrados no mesmo lugar e têm a mesma necessidade básica, que é ter companhia e através dela encontrar diversão e alegria.
Os dois únicos personagens que fogem a esta busca é o DJ do baile (Paulo Vilhena) e sua namorada (Maria Flor). Ela, principalmente, tem papel-chave na construção, cena a cena, desse sentimento que percorre o filme, que é a melancolia profunda. Uma tristeza que pode estar presente em sorrisos e até gargalhadas, mas que forma a epiderme do filme. Rejeite-se, aqui, a melancolia vista pela filosofia como paixão (David Hume) e a melancolia como doença, associada à depressão. Também não se trata da “preocupação que virá”, que acometia Walter Benjamin. A melancolia shakespereana em Hamlet também não nos serve. A melancolia que envolve o filme não tem a ver com o pessimismo para com a raça humana, mas com uma espécie de inveja de alguém que já não se pode mais ser. Uma certeza inabalável que não há o que fazer: a areia do relógio não pára de cair.
Esta leitura do filme em nada lhe tira o brilho, ao contrário. Chega de Saudade é uma produção que incrivelmente deu certo. A crítica muitas vezes faz o maior esforço para entender porque determinado filme, que tinha tudo para dar certo (elenco de estrelas, tema envolvente, diretor competente, orçamento milionário, etc.) não funciona.
Aqui, é preciso fazer o contrário, tentar entender porque este filme funciona. Afinal, história sobre velhos e cenário único (o filme se passa todo dentro do salão, exceto a abertura e a cena final) são elementos que costumam espantar a audiência, tanto de velhos como de jovens. Para complicar, o registro não é o da comédia e a ficha técnica exibe dois nomes incompatíveis, ou, no mínimo, estranhos. Daniel Filho assina a co-produção e Paulo Sacramento, a montagem. O primeiro, sempre associado a Globo Filmes e à filosofia comercial da empresa, é expert em lançamentos que fazem tantas concessões ao gosto médio, ou seja, à capacidade de fruição do espectador de telenovelas, que não sobra muita coisa. O segundo é diretor de O Prisioneiro da Grade de Ferro (2004), uma das experiências mais radicais em documentário, quando entregou a câmera aos presos do Carandiru e usou as imagens deles no filme. Ponto para Laís Bodansky, que soube unir diferentes e fazer um filme cujo resultado final impressiona. Ainda sobre Sacramento, é preciso enfatizar a força de seu trabalho como montador, que imprime velocidade ao filme sem cair no esfacelamento de planos de um video-clipe. Sua montagem dança ao ritmo das músicas do baile. Sua proposta está colada à concepção do roteiro, à direção e à cenografia. Estes quatro elementos, juntos, alcançam uma correspondência cadenciada, um acerto de passos. Ninguém pisou no pé do parceiro.
Filme para o mercado
Laís Bodansky sabe o quanto é necessário que o país produza filmes para um amplo mercado, com censura livre, para um público que não está acostumado a ver títulos, nem na televisão, e que não está apto a compreender linguagens mais complicadas. Filmes como 2 Filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005) bem demonstram que é possível mirar no grande público fazendo um cinema honesto. Projetos como o RodaCine e o Cine Tela Brasil são carentes deste tipo de produção. Este último é iniciativa da própria Laís Bodansky, que tal qual o gaúcho RodaCine exibe filmes gratuitamente em comunidades sem salas de cinema. Aliás, Chega de Saudade tem censura 12 anos, e possivelmente não obteve a classificação de censura livre por conta de duas cenas que não acrescentam ao personagem, portanto, são dispensáveis. Trata-se da personagem de Clarice Abujamra, uma socialite perdida no baile de periferia, que se masturba no banheiro e que protagoniza, na mesa do salão, uma cena com um bailarino argentino, que poderíamos chamar de “preliminares”. Há um excesso de informação sobre a sua personalidade sexual.
Tirando este deslize, ou o que nesta análise é considerado um deslize, Chega de Saudade é um desses poucos filmes que podemos considerar meticuloso, consciencioso e escrupuloso até com seus personagens e o mundo deles. Em Bicho de Sete Cabeças (2000), Laís Bodansky já apontava para uma opção bem clara, que é a de não maquiar o que muita gente gostaria de ver maquiado. Não quis glamorizar a droga no seu primeiro longa e não quis enfeitar a velhice no segundo. Não há nada mais tolo do que fazer de conta que envelhecer é bonito, é legal, traz felicidade. Há um conluio da sociedade politicamente correta em tratar do tema da velhice com otimismo, agregando humor e um ar de felicidade compulsória, como se fosse obrigação ver a velhice sob este prisma.
Carla Camuratti também enfrentou o desafio de falar de velhos em Copacabana (2001). Nele, atores como Marco Naninni foram envelhecidos em um resultado tecnicamente sofrível, já os personagens travestis colocados para alegrar o enredo ficaram visivelmente forçados. Mas o tom de Copacabana não deu certo por outras razões, aquelas cuja subjetividade faz todo e qualquer argumento parecer discutível.
Se examinarmos outra obra “acima de qualquer suspeita”, como O Baile, de Ettore Scola (1983), também rodado em um só cenário, veremos que igualmente faltou alguma coisa. A capacidade de emocionar e fazer pensar de O Baile e Copacabana é quase nula comparando-se a Chega de Saudade. Naturalmente, vai depender da relação empírica que cada espectador estabelece em frente à tela. E vai depender também, no caso do filme de Bodansky, qual relação as pessoas têm com a vida, ou seja, com a morte.
Chega de Saudade
Direção: Laís Bodansky
Roteiro: Laís Bodansky e Luiz Bolognesi
Com: Leonardo Villar, Tônia Carrero, Cássia Kiss, Betty Faria, Stepan Nercessian, Maria Flor, Paulo Vilhena e Elza Soares
País de produção: Brasil
Ano de lançamento: 2007
Não disponível em DVD no Brasil
Duração: 95 minutos