Alexander Kluge e as imagens da teoria
por Marcelo Oliveira da Silva
Aos 75 anos, o cineasta Alexander Kluge encaixa-se muito bem na expressão “músico para músicos”, que designa um compositor sem muito sucesso de público, mas bastante reconhecido entre seus pares – pelo menos em seu país. Essencialmente político e adepto do cinema de ensaio, seus filmes floresceram em meio à agitação dos anos 60, consolidaram-se na década seguinte e renderam ainda importantes prêmios em 1983, como o da Federação Internacional dos Críticos de Cinema (FIPRESCI) para O Poder dos Sentimentos (Die Macht der Gefühle), um ano após a consagração com o Leão de Ouro pelo conjunto da obra, também em Veneza.
Em seus filmes não há encadeamentos fáceis, narrativas lineares, nem imagens dignas de um pintor. Tematicamente, os filmes do “doutor Kluge”, como sempre frisava Fassbinder, estão datados pelos ciclones revolucionários (reformistas, no seu caso), que culminaram em 1968 e se desdobraram até o início do colapso comunista. Entretanto, duas qualidades impediram o completo empalidecimento de seus fotogramas: a observação sempre focada nas atitudes e contradições de pessoas comuns em seus impasses cotidianos e a aposta numa narrativa radicalmente dialética, amiga dos saltos temporais, da troca de pontos de vista e do embaralhamento de mídias em registros documentais e fictícios – mescla bastante em voga atualmente.
Doutor em Direito, Kluge começou como consultor jurídico do sociólogo Theodor Adorno no Instituto de Pesquisa Social, mais conhecido pelas teorias da Escola de Frankfurt. Desejava tornar-se escritor, mas Adorno não via futuro na profissão e o encaminhou para o cinema em 1958, numa produção do amigo Fritz Lang. Fechava-se o círculo que nortearia sua carreira: a Teoria Crítica Social como conteúdo de seus filmes e livros (no futuro somados a várias centenas de produções para a TV), formatados num estilo eclético, fragmentário e auto-reflexivo.
Alexander Kluge foi um dos fundadores e certamente o mais articulado porta-voz do Manifesto de Oberhausen. Apresentado em 1962 durante o festival de curtas-metragens daquela cidade, o documento denunciava a completa alienação dos poucos filmes que desde o final da Segunda Guerra vinham sendo produzidos na Alemanha e, sobretudo, as viciadas estruturas de produção e distribuição cinematográficas. O mercado de cinema do país, militarmente ocupado pelos EUA, Inglaterra e França, era monopolizado por Hollywood.
O manifesto mobilizou boa parte dos estudantes, que começaram a boicotar o chamado “cinema do papai”: melodramas conservadores, com lições de conduta em idílicas ambientações alpinas ou comédias com temperos levemente pornográficos. Também cansados de ver apenas produções estrangeiras a retratar a realidade em que viviam, os jovens intelectuais alemães, nascidos depois dos crimes nazistas, queriam retomar as rédeas da imagem de seu próprio país. (Qualquer semelhança com as cruzadas do Cinema Novo brasileiro contra as chanchadas e os mesmos problemas estruturais não é mera coincidência. A Segunda Guerra fora um momento internacionalmente generalizado de tediosa propaganda. A estagnação formal doméstica e o cansaço com o modelo americano eram mais ou menos idênticos em vários países ocidentais.)
O conhecimento das leis e o poder de associação de Kluge ajudaram a viabilizar várias iniciativas: uma faculdade de cinema (anexada à lendária Escola de Design de Ulm), cooperativas de cineastas e leis de fomento para a produção de filmes com dinheiro público. Estes foram co-produzidos com televisões estatais (na época sequer existiam canais privados), que passaram a exibir os filmes também em sua programação. Lentamente o Novo Cinema Alemão (ou Autorenkino, literalmente cinema de autor) foi recuperando lugar nas salas, reconquistando mais rapidamente o respeito da crítica internacional. Kluge recebeu em 1966 o primeiro grande prêmio (especial do júri, em Cannes) do movimento, com Despedida de Ontem (Abschied von Gestern).
Talvez o melhor critério para destacar as gemas entre os 14 longas e 19 curtas-metragens de Alexander Kluge seja mesmo o dos prêmios. Além dos já citados, cumpre recomendar Os Artistas na Cúpula do Circo: Perplexos (Die Artisten in der Zirkuskuppel: Ratlos), Leão de Ouro em Veneza, 1968, e Ferdinando, o Forte (Der Starke Ferdinand) prêmio da FIPRESCI, em Cannes, 1976. Por seus livros, o autor recebeu os prêmios Kleist (1985), Lessing (1989) e, um tanto tardiamente, o mais prestigioso da Alemanha, Büchner (2003).
Jornais e revistas costumam dizer que Kluge influenciou vários diretores alemães que alcançaram fama internacional, todos da segunda geração do Autorenkino: Wim Wenders, Fassbinder, Werner Herzog e Volker Schlöndorff. Tenho receio das muitas interpretações da palavra influência. Do ponto de vista temático, pode-se dizer que Schlöndorff, oscarizado com O Tambor (Die Blechtrommel, 1979), de fato tem em quase todos os seus filmes uma clara inclinação política. Porém, em termos formais, seu estilo é antes uma sábia combinação de várias soluções consagradas e não difere de qualquer produção americana competente. (É uma redução simplista, e certamente se aplica melhor à segunda metade de sua obra.)
Com Werner Herzog e sua busca pelo absoluto, muitas vezes em tom operístico, nem o paralelo temático com Kluge é possível. Wenders dirige com a barriga e não com a cabeça. Seus roteiros são desprovidos de peso, abertos à improvisação e ao devaneio momentâneo do olho a descobrir um cenário. Mesmo quando Kluge constrói imagens poéticas, suas misturas de aforismos com citações, trocadilhos com parábolas e esquetes com fragmentos resultam didáticas, cerebrais e concretas. (“Tudo tem as feições de um canteiro de obras”, diz um trecho de Trabalho Ocasional de uma Escrava (Gelegenheitsarbeit einer Sklavin). Onde Wenders deixa uma sensação, Kluge deixa um conceito.
E o que dizer de Fassbinder, formado pela prática teatral e pelas vivências em comunidade com seu grupo, espelhadas fielmente em vários de seus filmes? Kluge era um líder cooperativista; em contraste, Fassbinder afirmava: “Não me relaciono com ninguém menos perdido que eu mesmo”. Ele e seus personagens só metiam-se em política para imediatamente evidenciar a corruptibilidade de qualquer aventura humana. Por isso o adjetivo “doutor” toda vez que se referia a Kluge, implicitando uma separação entre acadêmicos e artistas. Creio que isso resume o caso.
Aproximam-se muito mais do gênero ensaístico de Kluge os filmes de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. De forte teor marxista, o casal também é expoente do Autorenkino e dos primeiros a alcançar proeminência. Com uma carreira dividida entre França e Alemanha, depois auto-exilados em Roma, a filmografia da dupla ainda não encontrou abrigo generoso em nenhum front. Suas últimas obras foram tornando-se mais herméticas, tal como aconteceu a seu amigo Glauber Rocha em A Idade da Terra. Contudo, são cineastas que, como Kluge, também merecem ser revistos por quem se interessa pela revalorização do ensaio, da arte anti-ilusionista e da atitude corrente de certos documentários contemporâneos em explicitar a impossibilidade de uma verdade objetiva.
Filmografia do diretor (longas-metragens):
Despedida de Ontem (Abschied von Gestern), 1966.
Artistas na Cúpula do Circo: Perplexos (Die Artisten in der Zirkuskuppel: Ratlos), 1967.
A Indomável Leni Peickert (Die Unbezähmbare Leni Peickert), 1969.
O Grande Caos (Der Grosse Verhau), 1970.
Willi Tobler e a Queda da 6ª Frota (Willi Tobler und der Untergang der 6ª Flotte), 1971.
Trabalho Ocasional de uma Escrava (Gelegenheitsarbeit einer Sklavin), 1973.
No Perigo e na Penúria, o Meio-termo Leva à Morte (In Gefahr und Grösster Not Bringt der Mittelweg den Tod), 1974.
Ferdinand, o Forte (Der Starke Ferdinand), 1976.
Alemanha no Outono (Deutschland im Herbst), 1978.
A Patriota (Die Patriotin), 1979.
O Candidato (Der Kandidat), 1980.
Guerra e Paz (Krieg und Frieden), 1983.
O Poder dos Sentimentos (Die Macht der Gefühle), 1983.
O Ataque do Presente Contra o Resto do Tempo (Der Angriff der Gegenwart auf Die Übrige Zeit), 1985.
Notícias Variadas (Vermischte Nachrichten), 1986.