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Publicado por em set 5, 2018 em Artigos, Festival de Gramado |

As Herdeiras: a pele e o espaço em que se habita

por Renato Cabral, presidente do júri da crítica no 46º Festival de Cinema de Gramado, especial para o site da ACCIRS

Muitas das produções selecionadas pela curadoria do Festival de Cinema de Gramado de 2018 destacaram como temas questões que envolviam moradia, habitação e atos de resistência em um período de especulações e dificuldades financeiras. Esses conteúdos e destaques podem ser visualizados de forma concreta ou fisicamente, se valendo em como seus personagens estão inseridos em locais e narrativas, como também de maneira mais abstrata, pela mentalidade que possuem. Com certa amplitude, podemos fazer uma reflexão a respeito do espaço e territórios em que corpos vivem, habitam e resistem nesses locais ou corpos. Um exemplo sutil desse raciocínio proposto é o filme selecionado para a Mostra de Longas Estrangeiros, o paraguaio As Herdeiras (Las Herederas, 2018), de Marcelo Martinessi.

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Tendo em vista que os homens presentes na trama possuem pouco protagonismo e quando aparecem se prestam comicamente apenas a carregar caixas e um piano, o filme de Martinessi é essencialmente feminino. E nesse universo repleto de mulheres, quase todas na terceira idade, que suas personagens travam um constante embate entre mulheres dominadoras e dominadas, além de eventuais imposições de papéis e espaços incubido às mesmas.

O ponto de partida do diretor, que também roteiriza a produção, se dá quando a vida da introspectiva Chela (Ana Brun) e da expansiva Chiquita (Margartia Irún), um casal de duas senhoras lésbicas herdeiras de ricas famílias paraguaias, é abatida por uma crise financeira que as levam a vender móveis, prataria e louças. Tudo isso acaba sendo ainda mais estremecido com a prisão de Chiquita. Com a ausência da personagem interpretada por Irún, Chela se vê não mais como dominada, dependente, mas sim como uma mulher que agora precisa encarar que os tempos mudaram e que a decadência se abateu sobre sua vida e o controle está de volta às suas mãos. Mas mais do que móveis que partem, o que Martinessi propõe de maneira figurativa aqui é que a sua personagem parece estar se livrando de um passado que não é mais funcional.

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Acidentalmente Chela acaba virando motorista particular de suas amigas ricas. O que nasce de um hobby se encaminha para uma fonte de renda e abre oportunidade para a entrada de Angy (Ana Ivanova), filha de uma dessas suas amigas. Muito mais nova, a personagem apresenta vigor e novidade para uma vivência regrada e cansada. É aí que reacende um jogo de interesse sexual que parecia esquecido a essa altura da vida. Aos poucos a performance excepcional de Brun como Chela vai se construindo como um desabrochar. A protagonista vai se tornando mais vaidosa, escolhe óculos mais estilosos, se mostra mais interessada no viver e em ampliar seu espaço além da casa deteriorada pelo tempo. A casa é, de maneira figurativa, a própria Chela.

Martinessi explora esses detalhes de transformação com muita sutileza e delicadeza. São pequenos momentos em que uma troca de mesa por um modelo mais simples e novo acontece ou na redescoberta sexual de Chela, com a personagem se masturbando de costas para a câmera. É uma cena discreta tal qual sua protagonista, a qual pouco revela, pouco diz e muito deixa subentendido com seus olhares e gestos, mas que constrói aos poucos suas saída independente e repentina de um ambiente que a sufoca.