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Publicado por em fev 29, 2020 em Uncategorized |

Cinéfila Aida Wailer Ferrás, Prêmio Destaque Accirs 2019

Por Fatimarlei Lunardelli

O que mais impressiona para quem conversa com a cinéfila Aida Wailer Ferrás, é constatar que ela viveu todas as transformações importantes da história do cinema. Porto-alegrense nascida no bairro Cristal, em 1933. Tinha dois anos quando começou a ver filmes em Quaraí e até hoje, com 86 anos, é presença assídua nas salas de cinema. Não poderia haver pessoa mais adequada para receber o Prêmio Luiz Cesar Cozzatti, com o qual anualmente a Accirs reconhece a cultura cinematográfica no estado. É a primeira vez que se distingue uma personalidade, uma pessoa cuja presença é imprescindível para magia do cinema acontecer, como muito bem afirma Aida, que nos contagia com sua alegria e incrível disposição para a vida.

Ela fez parte da criação da Colmeia, a feira de agricultores ecológicos, em 1989, atuou na Biodança, tem formação em yoga, visitou ashram na Índia, é inquieta e criativa. Segue a entrevista, que traz aspectos da formação, trajetória e vida desta figura singular da cena cinematográfica porto-alegrense.

Como está sendo receber o Prêmio Accirs ?

Eu fiquei muito orgulhosa, porque ficou constatado que o espectador é fundamental pra que o cinema exista. Podem se fazer verdadeiras obras de arte, mas tem que ter alguém que os veja. Eu falo isso no meu trabalho, o “vedor”, aquele que vê o que foi feito. Esse prêmio é a valorização do espectador cinéfilo. Eu aproveito tudo no filme, às vezes, uma cena basta.

Fale sobre suas origens e família

Minha mãe é de família pobre, filha de sapateiro, do tempo em que sapateiro fazia o sapato. Meu avô foi um dos convidados para trabalhar nas fábricas, em Novo Hamburgo, ele era de origem alemã, meu nome Wailer vem daí. Eu aprendi a pregar tachinha, bater sola, não tinha nada de plástico. A mãe, apesar de ser pobre, de ter cuidado dos irmãos desde os sete anos, era astral pra cima. Era inteligente, perspicaz, discernia as coisas, sempre muito direta. Meu pai era da Brigada, era um pedagogo nato, ensinava até como descer do bonde andado pra gente não cair. Ele era uma exceção, porque foi sempre um leitor e estudioso. Ele não foi formado em nada, só em contabilidade, depois que saiu da Brigada, mas deu aula de matemática, que estudou em francês, porque não tinha livro em português. Ele comprou um dicionário e traduzia do francês pra estudar matemática.

Vem da família essa tua disposição de aprender?

Minha mãe dizia: “Estuda, porque sem estudo tu vais sempre depender de homem”, uma mulher precisa de estudo pra ser independente. Eu ouvi minha mãe. Minhas irmãs, com 14, 15 anos foram estudar datilografia pra ganhar dinheiro. Não tinha mesada, elas queriam batom, brincos, essas coisas. Éramos quatro mulheres, eu sou a terceira. Minha mãe ficou chateada, pois queria que elas estudassem, mas elas foram trabalhar. Eu fui estudar e fazia tudo pra viver com pouco dinheiro, botava sola no sapato furado e usava os vestidos que minhas irmãs não queriam mais, que sobravam. Eu fui saber mais tarde que meu apelido na faculdade era “maloquera mor”, porque eu não combinava roupa com coisa nenhuma. Nunca dei bola pra roupa. Teve até um professor que me deu um tecido pra fazer um vestido. Tenho fotografia, usei aquele vestido. Eu era simplória.

O que estudou ?

Fiz clássico, no tempo que tinha clássico, e depois a Faculdade de Letras, línguas neolatinas em que se estudava português, francês, espanhol, italiano e latim. A gente reclamava, mas depois eu agradeci, pois graças a isso ganhei bolsa na França e na Espanha. Tive ótimos professores, a sorte de ter aula com franceses, porque ainda não tinha gente formada para dar aula em curso superior. Depois ganhei uma bolsa de aperfeiçoamento no Rio. Eu me formei em Letras em 1955 e fiz didática em 56, no Rio de Janeiro. Minha irmã morava lá e eu fui. Meu cunhado me inscreveu na Faculdade de Ciências e Letras do Distrito Federal, porque o Rio ainda era capital. Era na Tijuca, eu morava na Praia Vermelha e levava duas horas de bonde. Não tinha dinheiro. Vivia nas bibliotecas lendo, sobretudo na Fundação Getúlio Vargas. Eu não ficava em casa, ela tinha três filhos pequenos.

E o cinema?

No Rio de Janeiro ia pouco ao cinema, meu pai mandava uma quantia que só dava pro bonde e pra tomar uma vitamina. Eu fiquei dois anos, um fazendo didática e outro o curso de aperfeiçoamento com uma bolsa do Consulado Francês. Na Faculdade estudei sociologia da educação e adorei, porque nunca tinha estudado aquilo. Tirei primeiro lugar e fui recomendada pelo Ministério da Educação para dar um curso em Santa Maria, aceitei, com isso já tinha a passagem de volta. Era do Cades – Campanha de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Secundário – eu ia ensinar didática de francês para professores de francês. Eu nunca tinha dado aula para curso superior, só cometi erros, fiquei com a ficha negra. Depois disso eu vim pra Porto Alegre e voltei a dar aula no Don Diogo, pra turmas de normal, gente que ia ser professor. Dava português, francês e literatura. Era uma escola maravilhosa, sempre tive sorte de dar aula pra gente de nível.

Como era ser professora?

Nunca tive problema, gosto de dar aula. Na primeira aula dava um soneto de Machado de Assis e os alunos adoravam, já pegava eles por aí. Um dia, fui convidada para trabalhar na SEC, no Centro de Pesquisa e Orientação Educacional e fui pra trabalhar na Equipe de Línguas e Literatura. Trabalhei com Ivo Bender, com Raul Machado, com Lilia Duro, só gente de gabarito, uma equipe maravilhosa. Aí o professor Albino de Bem Veiga, da UFRGS, que tinha sido meu professor, perguntou se eu queria trabalhar num projeto chamado NURC – Norma Urbana Culta – um projeto ibero-americano que pretendia estabelecer um padrão de língua falada urbana culta, na América Latina, Espanha e Portugal. Era um projeto enorme que pretendia estabelecer o padrão da língua falada. Eram cinco capitais – Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Salvador, que entraram no projeto, porque não existe no Brasil um padrão fonético. Fui cedida 17 anos da Secretaria de Educação pra trabalhar nesse projeto, fizemos mais de 400 entrevistas, com gravador de rolo, eu amava fazer aquilo. Começou aqui, no Centro, depois foi pro Campus do Vale, a estrada era de terra, era uma dificuldade chegar, uma poeira, um barro na chuva. Era um mato, tinha só os cursos de Filosofia e Letras, ninguém queria ir, mas eu fui. Não tinha telefone, eu ia pro orelhão pra marcar entrevistas com as pessoas.

E esse teu espírito participativo, de onde vem ?

Foi quando entrei no Júlio de Castilhos, que era a escola que politizava as pessoas, que dava uma ideia do que é ser cidadão, do que é participar da vida numa cidade. Isso adquiri no Júlio de Castilhos.

Como entrou o cinema na tua vida?

Aida na Sala P. F. Gastal, na qual recebeu homenagem como espectadora mais frequente

Eu fui iniciada em arte através da imagem, através do cinema. Eu não sabia ler, tinha dois anos. Principalmente através do Carlitos, que era um grande educador, fazia a gente pensar. Eu sempre fui uma criança curiosa, fazia perguntas, ao contrário das minhas irmãs. A gente vivia em Quaraí, na fronteira, meu pai era da Brigada e a gente mudava muito de cidade. Com cinco anos viemos pra Porto Alegre e, depois, fomos pra Santa Maria, onde estudei um ano. Em Porto Alegre, no Instituto de Educação, eu matava aula no ginásio para ir no cinema na segunda-feira, que era o dia das margaridas, porque era de graça. Quem ia no domingo, nas matinés, já ganhava entrada pra segunda-feira. Às vezes o filme era proibido e o cara não queria que a gente entrasse, a gente entrava e não entendia nada mesmo. Era num cinema que não lembro o nome, antes de ser o Marabá, ali na Coronel Genuíno, às vezes, ia com o pai, com a mãe, nessa época a gente morava na Lima e Silva.

Fale sobre o hábito de anotar os filmes

As anotações partiram do momento em que minha mãe começou a reclamar da ‘papelada’. Além das agendinhas, os ‘diários’, eram cartas, postais, recortes,etc. Então, como a casa não era minha, resolvi copiar os títulos dos filmes e o cinema, desde 1949, numa agenda grande e velha que ganhara de alguém, na década de 60. Mas anotava por ano o que dificultava para encontrar os filmes, tendo de ler por inteiro cada ano. Em Rio Grande, onde fui trabalhar, me hospedei na casa de um casal, ele belga e ela francesa. Um dia ele perguntou se eu queria um caderno que não usaria mais. Aceitei. Era em ordem alfabética e entre as letras, folhas de papel arroz. Como eu escrevia muitas cartas e pretendia ganhar uma bolsa na França, minha correspondência seria enorme. Então, quando voltei da estadia em Paris, em 1963, é que resolvi organizar neste caderno que ficou famoso e é até fotografado. Ali, foram anotados filmes, copiados da tal agenda velha, em ordem alfabética, desde 1949 a 2015, quando tive de mudar de caderno, pois ele já estava se desmanchando. Claro que tive de acrescentar folhas, pois as originais eram muito poucas. Com a ‘história’ de acabar com a papelada, pus fora, por exemplo um trabalho da Elis Regina da qual fui professora, na Escola D. Diogo de Souza, em Porto Alegre. E trabalhos de outras alunas. Eu estava trabalhando Graciliano Ramos e cada aluna escolhia o livro. Ela escolheu, justamente o único que eu não tinha lido: Os Retirantes das Alagoas. Trabalho maravilhoso. Nota 10. Imaginem que dor quando ela morreu e foram me procurar para ver se eu tinha algo dela…

Aqui cabe dizer que Aida encontrou uma solução original. Ao final da entrevista ela me mostrou seu projeto Nexos/Desconexos, uma série de 50 histórias rápidas que criou a partir de títulos de filmes. São gravações, em sua própria voz, que articulam um enredo a partir dos filmes. Ouça aqui dois episódios:

O pecado de Júlia
Sombras do passado

Fale sobre o Clube de Cinema de Porto Alegre.

Eu ia sempre com o pai no cinema e aí, quando criaram o Clube de Cinema íamos todos os sábados. Eu tinha 17 anos e mulher não podia ir sozinha. O pai ia junto, também, nos concertos da UFRGS, quando tinha Ospa que se entrava de graça. Eu fui do Coral da UFRGS, uma das fundadoras. O Clube de Cinema me ajudou a ver o filme com outros olhos, não só pela história. Eu comecei a ler sobre cinema, entender porque uma história me chamava tanto atenção, por causa das técnicas.

Sobre casamentos

Um dia chegou um amigo e disse assim: “Tem um amigo meu que tá louco pra te conhecer”. Eu não sabia que era badaladíssima, eu tinha 37 anos, todo mundo já tinha casado, tinham até filhos, eu pensei que não ia mais casar. Daí conheci o Darwin Oliveira e nós fomos, com três amigos pra praia do Magistério e começou ali. Quando eu conheci, pensei “bah, esse cara gosta de cinema, é com ele que eu vou”. Viajamos juntos pra Europa e, na volta, fomos morar num apartamento que eu tinha comprado, que levou 10 anos a construção, na rua Vigário José Inácio. Ele era professor de filosofia, vivi com ele 12 anos. Eu aprendi com o Darwin e ele aprendeu comigo, nós tínhamos sempre assunto, sempre conversando. Ele era do Clube de Cinema, era amigo dos fotógrafos, dos caras que filmavam, do Norberto Lubisco, do Paulo Amorim, do Grimaldi, ele conhecia todo mundo e eu aprendi ouvindo.

E o outro?

No meu segundo casamento foi o contrário, eu ensinei. Eu conheci meu segundo marido na rua, eu gosto de conversar com as pessoas, puxar assunto, ele era operário da construção civil, me disse que era azulejista, Milton Jordano Pereira Aires. Comecei a chamar de Jor, dei pra ele um nome nórdico. Era o oposto do Darwin. Ele não tinha o segundo grau, não tinha terminado porque teve que trabalhar. Daí ele foi estudar. Era um artista, quando voltei de um congresso, me deu de presente uma escultura que tinha feito, de madeira, maravilhosa. Fomos ao Atelier Livre, ele queria fazer escultura, porque o cara nasceu escultor, mas o teste pra entrar era fazer um desenho e ele rodou. Ele fez maravilhas aqui em casa, esculturas, essa prateleira pras coisas que eu trouxe de viagem, o mosaico no terraço, etc.

Voltando ao cinema, pensou em fazer filmes ?

O cinema está entranhado em mim, eu estou sempre pensando em roteiro. Eu tenho tanta ideia que até me irrita. O que vou fazer com tanta ideia? Cheguei a fazer um curso com aquele argentino, o (Fernando) Solanas, tenho fotografia com ele, um curso maravilhoso. E também fiz um curso de televisão educativa em Curitiba e o que eu mais gostei foi de trabalhar naquela mesa que agora é um vídeo, a montagem. O cara da montagem tem que conhecer o roteiro todo. Não! Pra fazer cinema tem que ter muito saco, as pessoas são muito indisciplinadas, nunca tem dinheiro. Mas eu acho a arte mais bacana porque é de equipe, ninguém é melhor do que ninguém, acho bacana. As artes plásticas são uma decadência, até já fiz exposições, mas não tenho mais paciência.

Fale dessas exposições.

Fiz paredes inteiras de mandalas na Usina do Gasômetro, no Atelier Livre, na Casa de Cultura Mário Quintana, no Mercado Público. Fiz postal e dei pra todo mundo, fiz quatro mil, dei até pro porteiro. Agora, com essa idade que eu tô, vi que é tudo pra chegar no meu projeto “Água é Vida”. Há muito tempo que eu observo a água. Tá no meu blog universoaquatico.blogspot.com

Lia críticas de cinema?

Quando eu morei no Rio assinei o jornal Para Todos, eu cortava a parte da crítica, comecei a ler, ficar mais observadora do cinema. Quando veio o Neorrealismo, era uma maravilha, não tinha um que eu não gostasse. Quando veio Rocco e seus irmãos, era uma maravilha. A Nouvelle Vague foi muito difícil pra mim, aquele filme O Ano passado em Marienbad, era bem complicado, que coisa difícil. Eu fiz curso com o Enéas, com Sérgio Jockymann, quando a Puc ainda era aqui no colégio Rosário. Tudo que tinha eu fazia, qualquer palestra de cinema, lá tava a Aida.

O que pensa do cinema atual?

Acho que tá muito pobre, em primeiro lugar porque tudo se repete, é filme de amor, de perseguição, de crime, policial. A temática é quase sempre a mesma, o que mudou mesmo foi a técnica e eu não sou muito ligada na técnica, porque não adianta ter uma técnica bárbara, maravilhosa, pra não dizer nada. Tem filmes super bem feitos, mas depois tu espremes, não sobra nada. Eu acho que a vida está ficando vazia, muito capitalista. As vezes, me cansa um pouco. Esses filmes de terror, que eu não ia ver, eu fui pra ver como era. Sinceramente, as pessoas se deleitam com coisas que não tem valor nenhum. O gosto da gente também vai mudando. Mas eu continuo achando que é preciso ter capacidade de discernir num filme o que se pode aproveitar pra própria vida. Eu acho que a vida da gente é o que vale mais.

Sobre o cinema brasileiro

O filme brasileiro, por exemplo, eu acho que tá maravilhoso agora, eu vejo filmes brasileiros que anos atrás a gente não ia ver. Aquele do Bressane, que eu vi agora, no Capitólio, Sedução da Carne, só os primeiros 20 minutos já valem o filme. Achei lindo, lindo, lindo. Mesmo que ele não conte nenhuma história, é cheio de poesia, de conteúdo, é isso que interessa pra mim num filme. Mostra uma realidade poética, uma imagem poética. Cada vez mais, os filmes brasileiros que eu tenho visto, mostram a nossa realidade. Dou parabéns pro cinema brasileiro.

Foto de destaque: marfisassi