Cinema Novo para ser visto ou revisto
A Seleção de Cinema Brasileiro em andamento no Cine Santander exibe nesta terça-feira, 7 de fevereiro, às 15h, o filme do cineasta Eryk Rocha que foi um dos grandes lançamentos de 2016. A seguir reproduzidos dois textos de associados, publicados por ocasião da estreia em Porto Alegre.
Documentário “Cinema Novo” resgata efervescência criativa do movimento
Daniel Feix – jornal Zero Hora em 10/11/2016.
Cinema Novo carrega no título um peso que seu diretor, Eryk Rocha, sustenta no sobrenome (é filho de Glauber Rocha): em 90 minutos, dá conta de apresentar ao espectador um dos movimentos artísticos mais importantes do Brasil. O documentário, que saiu premiado do Festival de Cannes e foi apresentado em sessão catártica na Cinemateca Capitólio na semana passada, dentro da programação do Cine Esquema Novo, acaba de entrar em cartaz em Porto Alegre, no CineBancários e no Guion Center. Deve ser visto por todos os cinéfilos. E na sala escura, diante da tela grande: um de seus trunfos é apresentar, com a devida imponência, imagens marcantes de alguns dos maiores filmes realizados no país – de Rio, 40 graus (1955) a Macunaíma (1969), passando por Vidas secas (1963) e Deus e o diabo na terra do sol (1964).
Quem conheceu esses filmes por meio de cópias desgastadas ou mesmo em VHS tem tudo para se emocionar diante do Cinema Novo de Eryk Rocha. Melhor do que isso, o realizador de 38 anos e bons longas no currículo, a exemplo de
Pachamama (2008) e Transeunte (2010), foi além da mera homenagem: seu quebra-cabeças, que inclui trechos das produções, entrevistas e cenas de bastidores, tudo registrado à época (anos 1960, basicamente), conforma-se
em um fluxo narrativo dotado de personalidade própria.
É como se Cinema Novo fosse dois em um – resgate histórico que serve de introdução àquele que foi o momento criativo mais prolífico da cinematografia nacional e, ao mesmo tempo, um poderoso filme-ensaio capaz de ressignificar as imagens originais de que faz uso. De maneira mais rápida (ao falar do fim do movimento) ou aprofundada (quando o foco é o embate entre fazer filmes sobre o povo, mas não conseguir levá-los ao povo), Eryk Rocha toca em quase tudo o que cercou o movimento. Inclusive a sua “pré-história” – o Limite (1931) de Mário Peixoto e o trabalho pioneiro do cineasta Humberto Mauro (1897 – 1983).
Além disso, aborda o que a turma formada por Glauber, Ruy Guerra, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Cacá Diegues e tantos outros articulou para além da realização propriamente dita – como a distribuidora Difilm, que tinha à frente um Luiz Carlos Barreto prestes a se tornar o principal produtor do país. Também é por isso que é importante ver Cinema Novo atentamente, se possível na sala de cinema, onde detalhes têm menos chance de passar despercebidos: há estímulos à reflexão, sobre o passado e também sobre o que viria a ser o presente da produção nacional, a todo instante e de formas diversas, a partir de imagens, frases e também sons – até o volume de alguns ruídos é importante para entender certos propósitos de Eryk Rocha.
Em um momento histórico em que a situação do país se mostra desafiadora, estabelecer contato com um contexto tão rico de criação artística, no qual se fazia revolução por meio da estética, só pode ser recompensador.
Cinema Novo, de Eryk Rocha ***1/2
André Kleinert – Blog Anti-Dicas de Cinema em 24/11/2016
Seria um tanto incoerente fazer um documentário sobre o Cinema Novo utilizando uma linguagem convencional e acadêmica, tendo em vista o fato do movimento deflagrado por Glauber Rocha e outros inquietos cineastas ter procurado justamente romper com tradicionalismos mofados dentro da ordem cinematográfica. Por esse motivo, o cineasta Eryk Rocha adota uma via criativa e ousada em Cinema Novo (2016) – ao invés de simplesmente “contar uma história” utilizando os recursos mais óbvios nesse tipo de produção como se fosse uma reportagem, ele preferiu fazer o espectador entrar numa viagem sensorial dentro de um imaginário delirante e criativo para ter uma ideia do significado artístico e existencial das principais obras daquele período e de seus criadores. Nesse sentido, a citação visual direta de O encouraçado Potemkin (2016) não é gratuita, pois o enfoque na montagem, o grande legado de Serguei Eisenstein, é o principal mote criativo no documentário em questão.
Praticamente todo o material audiovisual é composto de trechos documentais da época e cenas dos principais trabalhos do Cinema Novo e de obras que influenciaram, foram influenciadas ou simplesmente tiveram alguma sintonia com tais produções cinemanovistas. Eryk Rocha organiza as ideias sobre a sua temática dentro de uma linha teórica delimitada com precisão e sensibilidade, criando dessa forma uma trama sutil e complexa. Há o surgimento explosivo dos filmes, o momento em que os cineastas discutem suas criações e o contexto sócio-cultural que as envolvem, o impacto que os filmes causam no Brasil e no mundo e, por fim, os motivos que levam à implosão do movimento e a dispersão de seus principais diretores. É fascinante a forma com que o documentarista estrutura o seu caleidoscópio narrativo dentro dessa lógica histórica, fazendo com que um mosaico de conceitos, abordagens e discursos diversos e muito pessoais ganhem uma coerência intrínseca na leitura que fazem do Brasil e do cinema do passado, do presente e do futuro.