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Publicado por em ago 6, 2021 em Destaque, Uncategorized |

Cinemateca(s) sob ataque

Artigo de Marcus Mello publicado originalmente no site Roger Lerina em 05 agosto 2021

Entre as inúmeras declarações, artigos e notas de repúdio divulgadas desde a última quinta-feira, 29 de julho, quando assistimos atônitos a um dos galpões da Cinemateca Brasileira (localizado na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo) ser consumido pelo fogo, poucas foram tão certeiras quanto o desabafo do cineasta mineiro Affonso Uchoa, de A Vizinhança do Tigre e Arábia, que publicou em suas redes sociais: “Demorou quase um ano, mas Bolsonaro e Mário Frias conseguiram o que queriam: a Cinemateca Brasileira arde em chamas e o patrimônio audiovisual brasileiro corre risco de destruição. (…) É só mais um capítulo de um projeto de destruição que, mesmo aos tropeços, segue bem sucedido. Assistimos bestificados ao país se desmanchar em slow motion. O futuro do Brasil é o deserto: essa gente não quer um país, quer um lote para fincar novos empreendimentos”. Como os próprios fatos denunciam, e a declaração de Uchoa bem sintetiza, não se trata de um “acidente” ou mesmo de “uma tragédia anunciada”, mas sim de uma nova etapa do plano de desmonte minuciosamente calculado por Bolsonaro e seus asseclas, que há mais de um ano mantinham a Cinemateca Brasileira fechada, após demitir seus funcionários terceirizados e dispensar sua equipe de servidores públicos concursados. Há meses especialistas vinham alertando os responsáveis para o risco de um incêndio iminente em virtude do abandono, mas nada foi feito. Ou seja, estamos diante de um crime contra o patrimônio público, cometido justamente por quem tem a obrigação constitucional de defendê-lo.

Um dia depois do incêndio, os antigos trabalhadores da Cinemateca Brasileira, mesmo desligados de suas funções, divulgaram um documento descrevendo o que foi consumido pelas chamas (os mesmos trabalhadores que saíram correndo de suas casas na noite fria de quinta-feira para auxiliar os bombeiros a salvar parte do material lá depositado). Entre as perdas computadas, estão o acervo documental da Embrafilme, do Instituto Nacional de Cinema e do Conselho Nacional de Cinema, materiais únicos do acervo do cineasta Glauber Rocha, parte do acervo da distribuidora Pandora Filmes, cópias de filmes brasileiros e estrangeiros em 35 mm, matrizes e cópias de cinejornais únicos, trailers, filmes domésticos, filmes publicitários, além de elementos complementares de matrizes de longas-metragens, bem como parte do acervo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, que reunia a produção de alunos da instituição ao longo de décadas. Tudo virou pó.

Neste momento, a dor provocada pelas imagens da Cinemateca Brasileira em chamas e pela perda definitiva de um acervo de valor inestimável só não é maior do que a raiva, e essa combinação de sentimentos nos leva à conclusão lógica de que a reação deve ser imediata. Não há como esperar mais. Basta de cartas de repúdio, de abaixo-assinados, de manifestos. Em 1968, por muito menos (a demissão de seu diretor Henri Langlois pelo ministro da Cultura da França), a Cinemateca Francesa foi invadida por representantes da classe cinematográfica, estudantes e frequentadores do espaço, em um gesto de desobediência civil que não apenas fez com que Langlois fosse reconduzido a seu posto como serviu de faísca inicial para o movimento de Maio de 68. A classe cinematográfica brasileira e a sociedade civil precisam assumir a defesa da nossa Cinemateca, como os franceses fizeram naquela ocasião. Ainda temos pela frente, se formos otimistas, 17 meses de governo Bolsonaro. Isso é tempo suficiente para que o projeto de destruição das hienas do Planalto siga a passos largos (alguém em sã consciência ainda duvida que eles não irão parar por aqui?). Não podemos aguardar passivos por um próximo incêndio, mais devastador e irreversível. O que está em jogo é a preservação do patrimônio audiovisual do Brasil, das imagens que nos constituem enquanto nação, da nossa identidade.

Sala Cinemateca/BNDES. Foto: Reprodução do site cinemateca.org.br

Embora o descaso do governo Bolsonaro em relação à Cinemateca Brasileira esteja associado a um projeto maior de ataque ao setor audiovisual, e ao campo da cultura como um todo, o caminho que conduziu ao incêndio da última quinta-feira vem sendo aberto por uma série de decisões equivocadas sobre a sua condução. Em março de 2018, este que é o maior acervo fílmico da América Latina passou a ter sua administração terceirizada, apesar dos alertas de profissionais da área da preservação para o risco de implementar tal modelo de gestão numa instituição responsável pela guarda e preservação da memória audiovisual do país. Como consequência da adoção desse modelo, ao longo de um ano e oito meses a Cinemateca Brasileira teve três (!!!!) superintendentes gerais diferentes e em julho de 2020 todos os seus funcionários terceirizados foram demitidos em função da suspensão de repasses financeiros por parte do Governo Federal para a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, vencedora do edital para assumir o espaço a partir de 2018. O colapso da Cinemateca Brasileira, com atividades e serviços suspensos e todo o seu quadro funcional dispensado, foi provocado pelo não cumprimento do contrato por parte do Governo Federal com a organização social encarregada de fazer a gestão do espaço, e já era esperado.

Em 1980, por ocasião da Reunião Geral da ONU, a Unesco reconheceu que a responsabilidade pela preservação da memória cultural de um país é uma questão de Estado e não de governo. Por sua relevância e complexidade técnica, a tarefa exige continuidade de gestão e profissionais altamente qualificados, com experiência acumulada e conhecimento do acervo a ser preservado, algo que nos âmbitos federal, estaduais e municipais, conforme prevê a Constituição, deve ser assegurado por meio da realização de concursos públicos, a fim de garantir a estabilidade das equipes. Terceirizar a gestão de nossos acervos, transferindo a responsabilidade para uma OS, é uma “solução” destinada ao fracasso, fato comprovado neste exato momento pela tragédia vivida pela Cinemateca Brasileira.

Cinemateca Capitólio. Foto: Guilherme Lund

O que esse lamentável episódio pode ensinar à Cinemateca Capitólio, instituição inaugurada em março de 2015 pela Prefeitura de Porto Alegre, com a missão de guardar, preservar e difundir a memória do cinema gaúcho? Passados apenas quatro anos de sua abertura, nossa Cinemateca também sofreu um duro ataque por parte da administração municipal, que a partir de 2019 não poupou esforços para terceirizar sua gestão. A previsibilidade de um processo de desmonte em virtude da opção por um formato de administração inadequado para atender às exigências do trabalho de preservação audiovisual foi justamente um dos argumentos centrais dos funcionários da Cinemateca Capitólio contra a proposta de terceirização defendida pelo ex-prefeito Nelson Marchezan (2017 – 2020). Felizmente, um movimento de resistência liderado por diferentes agentes – a Associação de Profissionais e Técnicos Cinematográficos do RS, o Sindicato dos Produtores Audiovisuais do RS, a Associação de Críticos de Cinema do RS, o Conselho Consultivo da Cinemateca Capitólio e a Associação de Amigos da Cinemateca Capitólio – conseguiu barrar o processo através de uma ação judicial. Foi uma luta coletiva, que contou com o apoio expressivo da comunidade cultural de Porto Alegre, dos frequentadores do espaço e dos moradores de seu entorno. No segundo semestre de 2020, a derrota na tentativa de reeleição foi a pá de cal nos planos privatistas de Marchezan, que ao longo de seu mandato tratou a cidade como um negócio familiar, sem o menor senso de espírito público. A resposta das urnas foi um sonoro não contra os desmandos de uma gestão desastrosa, e particularmente omissa na área da cultura. O atual prefeito, Sebastião Melo, empossado em janeiro último, e seu secretário da Cultura, o historiador Gunter Axt, já declararam que a transferência de gestão para uma OS não é o modelo adequado para uma instituição com o perfil da Cinemateca Capitólio. Ainda assim, o futuro é incerto. Em se tratando de uma administração de viés neoliberal, a ameaça da terceirização segue pairando no ar e nada assegura que daqui a algum tempo não estejamos passando pelo mesmo drama enfrentado hoje pela Cinemateca Brasileira. Somente nos dois últimos anos a equipe da Cinemateca Capitólio perdeu quatro funcionários de seu quadro, e outros estão prestes a se aposentar. Até o momento não há qualquer previsão de realização de concurso público para a renovação da equipe, e a dotação orçamentária destinada anualmente à instituição pela Secretaria Municipal da Cultura não é suficiente para atender às suas necessidades.

A realidade, inconveniente para alguns, não deixa dúvidas e, principalmente, não admite tergiversações ou isenção de responsabilidades. A condução de uma instituição de memória da importância da Cinemateca Brasileira ou da Cinemateca Capitólio não pode ser definida a partir de decisões de governos transitórios, norteada por uma convicção ideológica dogmática em torno de uma ideia reducionista de estado mínimo, sem diálogo com os profissionais da área, unanimemente contrários ao modelo de gestão terceirizada. Em entrevista concedida ao jornal Zero Hora em 2018, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos observava que “as parcerias público-privadas são uma máquina de transferência de dinheiro para empresários”, com consequências funestas para o patrimônio público a médio e longo prazo. O trágico incêndio da última quinta-feira em São Paulo está aí para atestar quão verdadeira é essa afirmação.

Antes de concluir, é preciso repetir em voz alta: estamos diante de uma situação-limite. É fato dado que o ataque à Cinemateca Brasileira não será freado por manifestos, notas de repúdio ou audiências públicas. A essa altura do jogo, só mesmo uma interferência (do STF?) para interromper o desmonte planejado por Bolsonaro et caterva, que prossegue a passos cada vez mais largos (no início da crise, o Governo de São Paulo se dispôs a socorrer a instituição, mas foi impedido, por se tratar de um equipamento federal). Enquanto isso não ocorre, ou para que finalmente aconteça (não se alardeia que as instituições estão funcionando, afinal?), o setor audiovisual talvez devesse se inspirar no exemplo dos bravos estudantes secundaristas que em 2016 ocuparam as escolas do país para defender seu direito a uma educação pública de qualidade.

Marcus Mello é pesquisador e crítico de cinema, membro da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, integrante da equipe da Cinemateca Capitólio