Confissões de um homem maduro (Entrevista com Domingos de Oliveira)
por Daniel Feix e Roger Lerina
A data para o bate-papo com o autor de mais de 50 peças, não poderia ser mais propícia: 27 de março, Dia Mundial do Teatro. No final da tarde da última quinta-feira, o dramaturgo, ator, diretor teatral, roteirista, cineasta, cantor e músico Domingos Oliveira conversou com Zero Hora no terraço de um hotel da Capital, ao lado de um piano e de costas para a tempestade que começava a se debruçar sobre a cidade.
“Só a arte salva”, ele assegura, com um copo de uísque cheio na mão, preparado por Priscilla Rozenbaum. “Coloquei água, tá, amor?”, avisa a companheira de Domingos há 26 anos e atriz de seus filmes e espetáculos. “São 17h, e hoje você ainda precisa dar aula”, ela justifica.
Aos 71 anos, o aforista de botequim e filósofo do cotidiano segue buscando a própria salvação, produzindo peças, escrevendo roteiros e rodando filmes como usina criativa incansável. Em Porto Alegre, acompanhou uma mostra de seus filmes, ministrou um workshop, apresentou um show de piano e voz e exibiu em primeira mão, e ainda não finalizado, Juventude – longa-metragem inédito em que contracena ao lado de Paulo José e Aderbal Freire Filho.
Em cena, os três atores, diretores e amigos interpretam personagens que fazem um balanço em tom acridoce de suas vidas, suas carreiras e seus amores. Colocar em perspectiva a prolífica trajetória artística e as idéias do realizador do clássico Todas as Mulheres do Mundo (1967) também foi a tônica da conversa a seguir. Com sua voz grave e baixa, Domingos respondeu a todas as questões prontamente e com a inspiração de sempre – curiosamente, o único longo silêncio do artista que há 45 anos fala de amor foi na hora de definir o que teria aprendido com ele:
“Vale a pena, apesar de todos os conflitos. O amor é a vocação do homem. O desamor é a loucura.”
Seus dois últimos filmes, Feminices e Carreiras, são centrados em personagens femininas. Em Juventude, você muda o foco para os homens. Por quê?
Domingos Oliveira – As mulheres, embora não apareçam, estarão no centro de Juventude. Elas constituem o assunto central abordado pelos três protagonistas.
Mas elas são vistas a partir do ponto de vista masculino.
Domingos – É um filme de homens, de fato. As mulheres só existem, em Juventude, na cabeça dos homens. Mas o que mais me interessa são os relacionamentos amorosos, que são compostos por dois lados, dois pontos de vista diferentes. É impressionante como, a partir de cada um desses lados, se pode dizer tanta coisa sobre o mesmo tema. Eu produzo muito, cada vez mais. Termino um trabalho e já estou noutro. Nem finalizei Juventude, por exemplo, e já deixei dois roteiros prontos – Todo Mundo Tem Problemas Sexuais e Os Inseparáveis. Este último será uma comédia comovente – um conceito que inventei em contraposição ao de comédia romântica. Não gosto dos conceitos tradicionais, prefiro fugir deles. Na verdade, faço um esforço gigantesco para minha obra não parecer séria. Levar-se a sério me parece ser uma descortesia da parte de um artista. Fora o fato de que, atualmente, a única forma de ser levado a sério é fazendo humor. São os novos tempos.
Os relacionamentos não são o único tema do seu cinema. O que chama a atenção em Juventude é bem o que você está falando: a abordagem de outros temas, alguns espinhosos, como a morte, de uma forma leve, descontraída, inclusive pela via humorística.
Domingos – É meu jeito de ver as coisas. Produzo tudo muito naturalmente, diria até inconscientemente. A inconsciência tomou conta de mim. Deixo tudo fluir, gosto de viver assim. Digo sempre que sou mais que um soldado da vida, sou um funcionário da vida. Vivo a serviço de mostrar como a vida pode ser boa. É com a descontração que a gente consegue perceber isso. E com arte. Só a arte salva. Arte é sempre auto-ajuda. Ela tem de auxiliar as pessoas a viverem melhor, abrir horizontes, produzir reflexões, divertir. Quando a gente sai do teatro, ou do cinema, ou quando termina um livro, se aquilo não nos ensinou ou nos proporcionou nada, não valeu a pena.
Para você, o que mais vale a pena?
Domingos – A imagem que faço da condição humana é a de alguém preso dentro de uma gruta de cimento, absolutamente fechada mas a revelar algumas fendas que por sua vez trazem tanta luz e oferecem tantas possibilidades que nos fazem esquecer da prisão a que estávamos submetidos anteriormente. A arte é uma dessas fendas. A paixão, sem dúvida, é outra. Quando a gente está apaixonado, não quer mais saber dos problemas da condição humana, não está mais nem aí para as injustiças, para a morte. Mas a paixão é passageira. E há outras coisas que valem a pena, ainda. Uma garrafa inteira de uísque, por exemplo. Mas isso não, isso leva a outro caminho, de mais sombras que luz. Isso mata.
Além de ter um filme pronto e outros dois roteiros concluídos, você tem uma nova peça teatral pronta para estrear (O Apocalipse Segundo Domingos Oliveira). Aos 71 anos, de onde vem tanta energia?
Domingos – Como eu disse, produzo tudo muito naturalmente. Mas tem uma coisa: acho que estou velho e já não tenho mais tanto tempo assim. Sinto uma necessidade de fazer mais do que já fiz. Sinto que preciso me superar.
Mas você não está insatisfeito com sua obra?
Domingos – Claro que estou. Aliás, eu merecia mais reconhecimento do que tenho. Meu trabalho é muito bom. Mas sinto que posso fazer mais, tenho condições para isso. Posso assinar trabalhos sublimes, sem defeitos, coisa que acho que não consegui com Juventude. Posso ultrapassar o muito bom e chegar ao ótimo. É o que me resta. Na verdade é o seguinte: os autores normalmente assinam uma única obra. Dostoiévski, que talvez seja o maior de todos, produziu apenas um grande livro – que é toda a sua obra. O que me pergunto é: qual é a minha obra? Tem uma coisa: meu nível de exigência é muito alto. Gosto dos filmes essencialmente de diálogos, como meus filmes recentes. (Ingmar) Bergman, por exemplo, fez diversos títulos nessa linha. E é autor de uma obra grandiosa. Mas essa não é a essência do cinema. A linguagem do cinema depende muito da imagem. Isso me incomoda, às vezes penso sobre isso e acho que eu poderia fazer mais. É que no fundo, no cinema, tudo é uma questão de dinheiro.
Já passou a fase que você chamou de “baixo orçamento, alto astral”?
Domingos – Sim. Fiquei muito contente com essa história toda, porque muita gente seguiu esse princípio e produziu coisas interessantes. Sinto que incentivei muita gente a pôr boas idéias em prática mesmo sem ter muita grana. Lembro de meu primeiro filme, Todas as Mulheres do Mundo: eu não tinha nada de dinheiro, mas precisava fazê-lo. Estava apaixonado pela Leila (Diniz), ela por mim, queríamos voltar um para o outro, havia muita coisa a ser dita, enfim, eu precisava dar um jeito de fazer esse filme. Aí encontrei o Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho, diretor teatral) e, respondendo à clássica pergunta “o que você está fazendo?”, contei a ele desse projeto. Ele riu muito, disse que era impossível filmar no Brasil, não havia como angariar patrocínio etc. Pois hoje é ainda mais difícil. Por isso é importante haver gente fazendo e incentivando a fazer, mesmo que em condições não tão boas. Só que eu já estou com uma idade e uma obra constituída que, acredito, me permitem almejar ter mais e melhor condições para trabalhar. Não que eu acredite que, por exemplo, faria Juventude melhor se tivesse R$ 2 milhões. Mas acho que eu atingiria mais público, usaria melhor a linguagem do cinema em seus aspectos técnicos de modo a dialogar com mais espectadores. Sinto falta disso. O preconceito das pessoas para com um produto diferente é enorme. Já se disse que meus filmes são teatro falado. Mentira! Faço cinema, em todos os aspectos da linguagem cinematográfica. Só não tenho grana para aprimorar como eu gostaria o tratamento de cada um desses aspectos.
A maturidade de alguma forma está mexendo com o seu – que parecia inabalável – otimismo?
Domingos – Só no sentido de radicalizá-lo. Tenho de me agarrar a ele, já que o corpo está caindo… É que é muito bom viver, é isso. O fato de reclamar de algumas coisas não indica que eu ache o contrário, nunca. Tenho extrema noção da minha profunda felicidade. Acordo todos os dias às 6h30min, 7h, e já começo a produzir. Crio tanto que, no meu computador, já há uma pasta chamada “legado”. Ali fica aquilo que criei e sei que, por pura falta de tempo, não vou conseguir fazer. Sei que um dia vou morrer, tenho medo de morrer, naturalmente. Só espero que a morte me pegue entre um passo e outro. Que ela chegue de repente, não me faça sofrer. Que venha sem me dizer que é ela que está chegando.
Você pensa muito sobre a morte?
Domingos – Vou citar uma das minhas frases prediletas, de Píndaro: “Ó, minha alma! Não aspira a vida imortal. Porém, esgota o campo do possível”. Prefiro pensar no que ainda há para fazer – e sempre há coisas a fazer – do que no tempo em que já não haverá mais. Meu próximo passo eu almejo que seja não apenas mais um, mas o melhor naquele momento. E um passo novo, diferente de todos os outros já dados. É assim com filmes, peças, shows e até as próximas aulas. A fase que a gente vive tem de ser de profundo otimismo. Os avanços da tecnologia, por exemplo, fazem nos aproximar cada vez mais da imortalidade – afinal, se vive cada vez mais. O computador faz com que nos sintamos próximos de Deus – a internet tem tanta informação e uma velocidade tão grande de comunicação que nos proporciona praticamente a onisciência e a onipresença. É uma loucura pensar sobre as possibilidades que temos, sobre onde podemos chegar. Acho que, como espécie, temos um futuro incrível pela frente.
Você tem algum tipo de espiritualidade, acredita em alguma metafísica?
Domingos – Tenho certeza de que Deus existe. A ordem das coisas naturais, o mistério da vida, a finitude dela, todos sentem que há algo por trás disso, que o mundo não pode ser só isso. Quem não admite que sente é porque nunca parou para pensar no assunto. A minha certeza de que Ele existe é grande como a certeza de que Ele não sabe que eu existo. (risos) Em O Apocalipse Segundo Domingos Oliveira – peça que estreará em breve no Rio –, eu interpretarei Deus. Serei um ser para o qual não existe passado nem futuro, tudo é presente – aliás, é a coisa mais fantástica que já inventaram essa idéia de estar em todas as épocas e lugares, não? Mas nessa peça Deus estará em crise, deprimidíssimo. Ele se dá conta de que o mundo que criou, que era uma maravilha, se tornou uma porcaria. Aí tem de voltar e rever algumas coisas. Começa a mandar muita gente não para o inferno, nem para o céu, mas para o purgatório. O purgatório está literalmente congestionado. Quando o apocalipse chega, bem, aí não dá para contar porque estraga a surpresa. Mas garanto que é algo otimista.
De onde vem a sua paixão por cantar?
Domingos – A música é a maior das artes. Ela vai direto no seu inconsciente, valoriza a palavra de uma forma que nenhuma outra linguagem artística consegue valorizar. A canção é a linguagem que faz a palavra aparecer mais, ficar mais ressaltada. E eu sou um autor que lida fundamentalmente com palavras. Não importa o tipo de canção em questão. Pode ser qualquer gênero – e há coisas boas em quaisquer gêneros. Quando danço, danço todos os tipos de música. E, quando faço uma seleção musical, gosto de pôr em seqüência coisas tão diferentes quanto (Johann Sebastian) Bach e (É o) Tchan. Sim, eu gosto do Tchan, acho divertido.
Você disse anteriormente que o que mais te interessa são os relacionamentos amorosos. Há quase meio século você produz filmes e peças sobre esse tema. Depois de todo esse tempo, o que mudou, o que você aprendeu sobre o assunto?
Domingos – Ih, o que eu aprendi… Me ajuda, Priscila… O amor não traz paz e felicidade, isso é fato. Nosso grande problema é justamente fazer essa associação. Deveríamos pensar o contrário e admitir que a paz e a felicidade são atributos da solidão. Acontece que a solidão dói. Por isso a alternância: quando estamos sós, queremos nos livrar da dor estando com alguém, e quando estamos com alguém, queremos a paz e a felicidade proporcionadas pela solidão. E assim vai. O que mais aprendi? Não sei… (pausa) Acho que a assumir que o meu destino é amar. É o destino de todos. É o que vale a pena, apesar de todos os conflitos, dos percalços, de uma eventual distância etc. O amor é a vocação do homem. O desamor é a loucura. É isso. A loucura é enfrentar a realidade. O homem normal recusa a realidade. Porque ele precisa viver na ilusão. Quem não vive na ilusão é o louco. A recusa da realidade é a essência da normalidade. A única escolha do homem é saber em que grau de ilusão ele prefere viver. Sempre fui um homem apaixonado pela ilusão, pela embriaguez. Adoro a embriaguez. No sentido literal e metafórico. É preciso se embriagar, se iludir para enfrentar a realidade. É por isso que a arte é tão importante, é a atividade mais importante do homem. É preciso ver filmes, ouvir música etc. A arte equilibra a sociedade. Se há uma regra no mundo é que não há regras no mundo. Tudo se move, nada é permanente, e o que nos guia muitas vezes são os instintos. A arte lembra aos homens que eles devem ser honestos, solidários, lembra aos homens os grandes valores que eles devem ter. A arte, no final das contas, portanto, foi feita para não mudar – ao contrário do que muitas vezes se diz por aí.
Nesse meio século, o que você detecta que mudou não em você, mas nos relacionamentos de uma forma geral?
Domingos – A minha geração foi a última que teve boas ilusões. Ou seja, bons ideais. A psicanálise foi um deles. Ela almejava levar as pessoas à felicidade a partir do seu enfrentamento com seus fantasmas. A partir da derrota desses fantasmas. Não deu certo. A psicanálise não consegue derrotá-los, ela é muito mais frágil do que se supunha. Outro sonho que passou: a revolução. Esse também caiu por terra. Mais um: o casamento. Imaginava-se que ele era eterno, que bastava um beijo do mocinho na mocinha para subir o letreiro “the end”. Já não é mais assim. O amor, como a psicanálise e a revolução, já está provado, não resolvem mais a vida das pessoas. E nada foi posto no lugar. O que precisamos, urgentemente, é de novos ideais, novas ilusões. A impressão que tenho é de que o caminho virá através da cidadania. Esse é o ideal que talvez nos norteie daqui para a frente. As pessoas vão começar a perceber que quem faz o mundo são elas próprias, e não as ilusões criadas pelos outros – que, afinal de contas, não funcionaram. E, no momento em que nos dermos conta – e acho que caminhamos para isso -, de que, se cada um de nós fosse mais generoso, honesto, tudo seria tão maravilhoso, talvez encontremos um bom rumo.
O discurso mais recorrente, no entanto, é de que as pessoas estão cada vez mais individualistas. Você pensa o contrário?
Domingos – As pessoas estão mais individualistas porque não têm mais motivos para ficar juntas, porque não têm mais assunto. Antigamente havia mais planos a serem feitos do ponto de vista coletivo. E mais inimigos a serem derrotados. Mas acho que em breve as pessoas podem começar a se dar conta de que há contra o que lutar. Acho, por exemplo, que vivemos uma época de alta repressão sexual. Não só por conta da Aids, da camisinha, enfim, dos fatores externos. Hoje vejo meninas e meninos lindos e sós. Um tempo atrás, isso era impossível. Isso não é por causa da Aids, somente. Isso é porque a relação amorosa, em certo ponto, do jeito como a conhecíamos, pode ter fracassado. E aí as pessoas vão ficar infelizes e acabou? Acho que não. Vislumbro a descoberta de novos caminhos. Tenho muita fé na humanidade. Temos uma capacidade muito grande de nos refazermos. A história prova isso. Não sou otimista por acaso.
Uma versão reduzida desta entrevista foi publicada originalmente no Segundo Caderno do jornal Zero Hora de 1/4/2008. A íntegra saiu no blog de cinema do jornal, o Primeira Fila. Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.