Crítica: Deserto Particular
por Rodrigo de Oliveira
Aly Muritiba tem conseguido algo no cinema brasileiro que é bastante difícil: constância. O cineasta parece não sair dos sets de filmagem, lançando séries e filmes com periodicidade invejável. Só em 2021, quem é ligado em festivais pode assistir a dois trabalhos do diretor baiano, radicado em Curitiba: Jesus Kid, premiado no Festival de Cinema de Gramado, e Deserto Particular, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A boa notícia é que a produtividade não tem sido inimiga da qualidade. Pelo contrário. Deserto Particular, o mais recente trabalho, escolhido como o representante do Brasil no Oscar 2022, é seu longa-metragem mais maduro. Ao dividir a trama a partir dos pontos de vista do platônico casal principal, Muritiba e seu coroteirista Henrique dos Santos nos convidam para uma jornada intensa, amorosa e emocionante – mas, claro, com seus percalços.
O texto traz spoilers. Na trama, conhecemos Daniel (Antonio Saboia), um policial curitibano que está suspenso por um grave erro que cometeu. Ele cuida do pai idoso (Luthero Almeida) e precisa voltar a trabalhar para pagar as contas. A sua única felicidade no momento são as conversas que tem com Sara, uma mulher que mora do outro lado do Brasil, com quem se comunica pela internet. Certo dia, ela simplesmente para de responder as mensagens e os telefonemas. Daniel não entende o que aconteceu, tenta comunicação, mas sem sucesso. Vendo o chão abrir sob seus pés, Daniel resolve jogar tudo para o alto, pega seu carro e vai até Sobradinho, no sertão da Bahia, para encontrar Sara. Ele espalha cartazes com a foto dela pela cidade na esperança de que alguém a conheça. Um amigo dela, Fernando (Thomas Aquino), intercede e dá as coordenadas para que o rapaz a encontre, em uma boate. Na festa, Sara aparece e, depois de um rápido encontro, ela some. A partir daquele momento, começamos a enxergar a história sob o ponto de vista de Sara, vivida por Pedro Fasanaro, uma pessoa não binária. Um dos motivos por ela ter se escondido de Daniel era o fato de pensar que não seria aceita como é. Em Sobradinho, Sara é conhecida como Robson, vive com a avó (Zezita Matos) e trabalha duro para se sustentar. Seria possível ter uma história de amor com Daniel?
Muritiba faz questão de montar muito bem ambos os cenários desse romance. Ele toma meia hora do começo do filme para mostrar a realidade de Daniel. Seus problemas no trabalho, os cuidados com o pai, as conversas com a irmã (Cynthia Senek). Através dela, que revela ao irmão que está namorando uma moça, sabemos que Daniel não aceita relacionamentos homossexuais. Depois deste prólogo, digamos assim, os créditos iniciais aparecem e vamos junto de Daniel até o sertão baiano para encontrar Sara. A performance de Saboia é certeira e é incrível notar como seu rosto se ilumina ao ver sua amada pela primeira vez. Ou como ele se mostra mais aberto, até com um desconhecido, quando precisa falar de seu amor por ela – a cena da balsa, dividida com Thomas Aquino, é ótima. Capturada em um plano sequência, vem dos atores a responsabilidade de dar ritmo ao diálogo, algo que sai perfeitamente bem.
O pulo do gato de Deserto Particular é mostrar o outro lado da história. Sara, que até então era um mistério para Daniel e para os espectadores, tem sua vida desvelada. E é curioso como seu cotidiano não é tão diferente de Daniel. Ela também tem cuidado com alguém idoso – sua avó, que embora não precise dos mesmos tratos do pai do rapaz, ainda é alguém que merece cuidados. Notável que existe uma solidão que os dois dividem, um vazio que só é preenchido quando há diálogo entre eles. Pedro Fasanaro tem uma performance sensível e pungente, nos fazendo torcer para que em seu caminho as coisas deem certo. Seria com Daniel? Seria em outro lugar? O que importa é que esteja bem, tocando a sua vida, como mesmo fala em certa parte do filme. A amizade com Fernando é outro ponto destacável, tanto pelo roteiro quanto pelas atuações.
Aly Muritiba não esconde que está fazendo uma grande história de amor e não se furta em usar sua câmera para fotografar os atores na melhor luz possível ou em lançar mão de músicas pop conhecidíssimas para criar clima. Total Eclipse of the Heart, cantada por Bonnie Tyler, foi uma favorita das reuniões dançantes de outrora e aqui é usada como uma ligação forte entre os personagens. A cena da boate é belíssima, mas é o prelúdio para o rompimento do casal. Quando Daniel descobre que Sara não é uma mulher cisgênero, ele não consegue aceitar. Suas atitudes são violentas, depois infantis. É nesse trecho que tanto Saboia quanto Fasanaro brilham mais intensamente. Difícil não sentir por Robson – que ainda se vê refém do pastor da cidade por conta do seu segredo.
Texto publicado originalmente na cobertura da Almanaque21 da Mostra de Cinema de São Paulo.