Crítica que se mantém atual
Por Adriana Androvandi
Um dos filmes em competição na categoria de Melhor Filme Brasileiro no 49º Festival de Cinema de Gramado foi “Homem-Onça”, de Vinicius Reis (2021). Este drama retrata transformações políticas e econômicas que ocorreram no Brasil na década de 1990, com o início de várias privatizações de estatais. Através da história de uma família, formada pelo pai, Pedro (Chico Diaz), a mãe Sônia (Silvia Buarque) e a filha Rosa (Valentina Herszage), se percebe o impacto emocional e financeiro que um desses processos gerou na sua trajetória.
Ambientado no Rio de Janeiro, o filme foi inspirado na experiência pessoal do diretor, que contou que seu pai viveu uma situação semelhante quando a empresa de mineração Vale foi privatizada. No filme, a fictícia empresa se chama Gás do Brasil. A questão retratada não apenas discute as mudanças, mas como são conduzidas. Pedro coordena um departamento da companhia que trata de sustentabilidade de uma área ambiental, que recebe elogios até de países do exterior. Por ser um setor que aparece de forma positiva na imprensa, ele pensa que sua equipe estará a salvo quando começam os boatos de reestruturação no trabalho.
Ele conversa com superiores para garantir que sua equipe não sofrerá demissões e ouve promessas falsas. Chefes lhe tranquilizam com palavras que depois se percebe não terem valor algum. A cada dia há mais estrangeiros falando inglês pelas salas e corredores. Há quem lhe chame de “dinossauro” por ser um antigo funcionário, com ar de zombaria. Até que chega o momento cruel em que Pedro tem que demitir sua equipe e antecipar a sua aposentadoria.
Uma das cenas marcantes do filme e que sintetiza essa falta de humanidade é quando Pedro chega em sua sala de trabalho e vê que a planta que era o “talismã” de seu departamento foi retirada sem aviso prévio. Planta que Pedro regava ao longo de anos e tinha uma simbologia especial para o setor. Torna-se uma metáfora para toda a dedicação de Pedro à empresa e que é subitamente descartada.
Recomeçar no mercado de trabalho, ao lado da mulher, se torna muito difícil para Pedro, um homem maduro que tinha paixão pelo que fazia. Sua doença de pele vai se expandindo, assim como seu estresse. Até que ele decide voltar para a cidade em que nasceu e cresceu, Barbosa. A distância da família que fica no Rio de Janeiro se concretiza com uma separação. Na localidade, ele tenta se reconectar à natureza, a única coisa que parece lhe trazer paz. E passa a morar com uma mulher que foi seu amor de juventude, interpretada com magnetismo por Bianca Byington, a única artista do filme que saiu com um troféu no 49º Festival de Cinema de Gramado, o Kikito de Melhor Atriz Coadjuvante. Vale lembrar que esta é a segunda vez que a atriz ganha um Kikito na mesma categoria. A primeira foi na sua estreia no cinema, com o filme “Tormenta”, de Umberto Molo (1980).
Em um texto de análise do Festival de Gramado deste ano, veiculado pela Agência Estado, o crítico Luiz Zanin (SP) escreveu que “Homem-Onça” foi o grande injustiçado desta edição, no que concordo. O argumento não foi abordado com profundidade em outras produções da cinematografia brasileira, trazendo uma parte da história recente do país com originalidade. O trabalho de Chico Diaz é admirável, de maneira que se recebesse o Kikito de Melhor Ator não seria uma injustiça, mas de qualquer maneira este filme marca sua carreira com mais um sucesso. Nando Cunha, que levou o troféu por “O Novelo”, fez um ótimo trabalho, e a disputa estava acirrada nesta safra tendo ainda a atuação inesquecível de Matheus Nachtergaele em “Carro Rei”.
No debate dedicado ao filme, realizado num domingo pela manhã, após a exibição do longa no sábado, dia 14 de agosto, o diretor revelou que o processo de privatização da Vale foi tão violento psicologicamente para os funcionários que seu pai nunca mais foi o mesmo, o que afetou toda a família. Conduzido com maestria pelo jornalista Roger Lerina, esse debate levantou ainda outra questão, a de que o filme conseguiu transmitir a emoção dos personagens com tomadas pouco convencionais, como em uma refeição em que Pedro está sentado de costas para a câmera. Na mesa, está a filha em posição lateral e a mãe, frontal. Quando a filha começa a contar que um professor seu diz que as privatizações são benéficas à economia, Diaz consegue, mesmo de costas, por meio de sua expressão corporal e do diálogo, manifestar sua revolta com a opinião afinada com o neoliberalismo.
Esta obra de Vinicius Reis consegue propor uma reflexão sobre os anos FHC. Mas se percebe que várias questões que começaram naqueles anos seguem em curso, como as privatizações e a perda de direitos trabalhistas conquistados, sem falar que o país está com uma legião de desempregados que, assim como o casal protagonista, precisa recomeçar mesmo quando a idade já está próxima do que se convencionou chamar de tempo para a aposentadoria. É uma produção que faz uma crítica social e econômica que se mantém surpreendentemente atual.