Decifrando a linguagem do espelho (O Espelho, 1975)
por Márcia Esteves Agostinho (aluna do curso de Produção Audiovisual da Ulbra)
Diversão ou arte? Meio de expressão ou linguagem? A controvérsia existe e não há sinais de que possa ser resolvida. Contudo, uma coisa parece clara: o cinema é intersubjetivo. Cinema só pode existir na relação entre sujeitos – de um lado o autor, de outro o espectador. Nesse espaço relacional, a realidade é duplamente mediada, seja pela intenção do autor, seja pela interpretação do espectador. Observando tal fenômeno, Pingaud afirma que um “filme parece condenado, seja à opacidade de um sentido rico, seja à clareza de um sentido pobre. Ou é símbolo, ou é enigma”. O que escapa nesta afirmação é o fato de que um filme pode ser salvo da condenação caso seja capaz de: 1) expressar um sentido rico com clareza suficiente para que o espectador, ao qual ele se dirige, o compreenda, ou 2) convencer o espectador de que o sentido é tão rico que vale o esforço para vencer sua opacidade.
Muitas vezes, o modo que o autor encontra para realizar sua intenção é tão próximo do universo do espectador que nenhum esforço é exigido deste último para a compreensão do filme. O espectador pode, então, entregar-se ao deleite da apreciação estética das escolhas do autor (clareza de um sentido rico) ou à pura diversão passiva, comum nos filmes ditos comerciais (clareza de um sentido pobre). Em outras situações, o autor dedica-se a buscar formas não-convencionais de expressão, carregadas de simbologia, que exigirão do espectador esforço intelectual e atitude interpretativa. Considerando-se a enormidade de significações potenciais para uma mesma escolha – o primeiro plano de um rosto de mulher, por exemplo – haverá risco de ambigüidade e, até mesmo, de incompreensão. Dependendo da distância entre os universos culturais do autor e do espectador, o esforço de interpretação exigido deste último pode variar de uma sensação excitante de desafio (opacidade de um sentido tão rico que vale a pena se esforçar) até uma cruel exigência de atenção sem retorno afetivo (opacidade de um sentido pobre, ou de um sentido rico mas que não o afeta).
O Espelho, de Andrei Tarkovski, é um desses filmes que são salvos da condenação. É verdadeiramente um filme de arte no sentido que ele é oferecido “em aberto” ao espectador para que esse construa seus próprios significados. Sua incompletude dignifica o espectador que é convidado, a todo instante, a interpretar os sinais – imagens, sons, palavras – para construir sua própria versão da estória. Apesar da opacidade da trama, cujas peças nos chegam através de fragmentos da memória do narrador, a poesia das imagens nos faz acreditar que vale a pena investir nossa atenção, não para desvendar um enigma, mas para decifrar uma carta de amor.
Para aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de vê-lo, O Espelho é uma biografia da personagem Alexei (que compartilha muitos elementos autobiográficos do diretor), um homem de 40 anos que vive na União Soviética da década de 1970. Nascido no interior, na casa do avô, mas vivendo em Moscou, durante a infância, Alexei retorna freqüentemente àquele local isolado. Ainda pequeno, seu pai abandona a família e Alexei e a irmã são criados pela mãe. A intensidade das figuras femininas em sua vida tem, segundo o próprio Alexei, um forte impacto sobre sua personalidade. Procurando evitar que o mesmo aconteça a seu filho, Alexei sugere que sua ex-mulher se case novamente, ou que dê a ele a guarda do adolescente, o qual acaba por rejeitá-lo. Aparentemente deprimido e doente, Alexei reflete sobre sua existência, olhando para dentro de si por meio das relações com quem ama: sua mãe, seu filho e a mãe de seu filho. Nessas reflexões, imagens documentais e referências à literatura o inserem em um contexto histórico e filosófico mais amplo. Entram em cena temas como a Rússia pré-revolução, a segunda guerra, a filosofia e as artes renascentistas, a religião e até mesmo o dilema entre trabalho industrial e trabalho intelectual/expressivo no socialismo real. O drama do indivíduo não se separa, portanto, do mundo a sua volta.
Lendo o filme
Apesar título do filme e dos inúmeros espelhos presentes no cenário, Alexei nunca aparece refletido. Como se vivesse em uma era anterior ao surgimento deste objeto, Alexei vê-se através do olhar do outro. A trindade de olhares que formam a auto-imagem de Alexei são a mãe, a mãe de seu filho e o filho. A primeira é aquela que encaramos logo ao nascer. A outra é quem escolhemos para, com a ajuda da genética, criarmos o terceiro à nossa imagem e semelhança. São as relações com esses personagens que constituem Alexei como sujeito, e é através deles que sua história é contada.
No início do filme, em cores suaves e naturalistas, uma mulher jovem sentada na cerca de uma casa é mostrada em plano aberto contra uma vasta paisagem bucólica. A câmera se move e vemos a chegada de um vulto de homem. Conforme ele se aproxima, percebemos que é um estranho. Inicia-se um diálogo, em que não é usado o tradicional plano-contraplano. Ao contrário, a câmera ou fecha em closes na mulher, ou em planos-conjuntos dela com o homem. Ele nunca aparece em close, dando a sensação de que ele não é necessário para a narrativa. O interesse está nela e, em seguida, nas duas crianças que estão atrás, deitadas em uma rede, observando a mãe. A partir daí, a câmera parece assumir o ponto de vista do menino. O estranho vai embora e, um plano aberto mostrando um forte vento que balança a vegetação reforça o sentimento de abandono daquela mulher e das crianças. Os três entram na casa, a noite cai e, enquanto as crianças jantam, ouvem-se gritos lá fora. A mãe sai para ver o que é, e sem aparentar desespero, volta para avisar as crianças que há um incêndio na vizinhança. Ela sai novamente. A câmera a mostra de costas, em imagens emolduradas, como se o menino a observasse. Ela passa pelo poço, pega água, mas, ao invés de correr para ajudar a apagar o fogo, apenas molha seu rosto, como quem se acarinha. Essa reação é um dos primeiros sinais que o espectador tem sobre sua personalidade.
Após essa seqüência, vem uma cena em sépia que, mais tarde, ficamos sabendo que é um sonho que Alexei teve com a mãe. O vento balança a folhagem, a mãe lava os cabelos, ajudada pelo pai. O som das gotas de água que pingam do cabelo se intensifica e uma música tensa, juntamente com a imagem em câmera lenta, transmitem um momento denso quando as paredes da casa começam a ruir. A atriz jovem, por um breve instante, fita a câmera, através do espelho. O que isto representa? Seria uma censura ao olhar indiscreto da criança? Em seguida, uma velha senhora surge no reflexo do espelho.
Um grande plano-seqüência marca, pela primeira vez, a presença de Alexei adulto – ainda que nem um fio de cabelo seja mostrado. Como em todas as seqüências dele adulto (exceto no fim do filme, na cena do leito, em que parte de seu corpo é mostrada) sua presença só se manifesta por meio de sua voz off. A câmera é sempre subjetiva, marcando, todo o tempo, o ponto de vista de Alexei. Durante uma conversa telefônica com sua mãe, Alexei explica ao espectador que o que vira antes era um sonho e que a mulher, jovem ou velha, era sua mãe. Conta também que foram abandonados pelo pai e que isto teria ocorrido no mesmo ano do incêndio. Enquanto o diálogo dá as pistas para compreendermos a trama e a conturbada relação entre Alexei e a mãe, a câmera nos mostra como Alexei percebe sua casa. No decorrer deste plano, a imagem vai-se emoldurando por portais concêntricos – o que nos remete à noção de infinito, transmitindo uma suave sensação de abandono, somada a uma disposição da personagem para reler a sua vida.
Em seguida, a importância da personagem da mãe de Alexei se reforça. Tem início uma longa seqüência em sépia, repleta de longos planos-seqüência, que mostra a mãe no trabalho. Não é sonho, pois trata de fatos que, a princípio, realmente teriam ocorrido na vida dela. Nem tampouco é lembrança, pois nem tudo que é mostrado pela câmera foi presenciado pela personagem. Há um momento em que ela entra no banheiro e a colega de trabalho fica de fora e volta cantarolando sozinha pelo corredor. Assumamos, então que é um flash-back que o diretor nos oferece para demonstrar outros aspectos da personalidade da mãe e de suas relações no trabalho, por meio das acusações da colega de que seria egocêntrica a ponto de o marido tê-la abandonado e que faria seus filhos infelizes. Ou ainda – usando o nosso direito à livre interpretação – talvez seja a imaginação do pequeno Alexei dando cores a um relato feito por sua mãe, sobre como tinha sido seu dia de trabalho. Essa hipótese justificaria o tom heróico da atuação da mãe que corre decidida, sob uma chuva torrencial, para a gráfica onde trabalha com o objetivo de salvar o produto de um possível erro que ela teria identificado.
A mesma atriz surge na tela. Agora, porém, a personagem é a ex-esposa. Apesar de, a princípio, ser evidente para o espectador que não se trata mais da mãe (seja pela mudança de figurino e de cenário que indicam uma passagem de tempo, seja pelo conteúdo do diálogo), o autor reforça essa informação e a justifica fazendo Alexei dizer à ex-esposa que sua fisionomia é a que aparece sempre que lembra da mãe. Mais à frente, no decorrer do filme, novamente Alexei, “edipianamente”, sugere a semelhança entre as duas mostrando algumas fotos de ambas. O interesse pela ex-esposa é todo o tempo reafirmado por uma câmera próxima, porém delicada, que explora, em primeiros e primeiríssimos planos, as expressões mais sutis da atriz. Da mesma forma, seus cabelos são realçados denunciando o poder de sedução que esta mulher ainda exerceria sobre Alexei.
O recurso da utilização de um mesmo ator para duas personagens é novamente empregado em relação a Ignat, filho de Alexei, e a ele próprio na adolescência. Nesse caso, pai e filho estariam ligados não só por uma semelhança física, mas também por laços espirituais. Em uma seqüência emocionalmente forte, ao se despedir da mãe que o deixa por uns dias na casa do pai, Ignat revela estar tendo uma sensação de deja-vu, embora nunca tenha estado naquele local. Em seguida, folheando livros de seu pai, Ignat parece reviver momentos vividos por Alexei em sua idade. Nessa cena, utiliza-se da marca de vapor da xícara de chá na mesa para representar uma realidade – uma presença – imaterial. A mesma referência, possivelmente inspirada pela obra de Tarkovski, é encontrada no filme O Sexto Sentido (dirigido por M. Night Shyamalan, em 1999), na cena da cozinha, com a marca de suor da mão do menino na mesa.
É a partir do diálogo com Ignat que Alexei recupera lembranças de sua adolescência. A escola militar, o primeiro amor, as notícias da guerra e a descoberta das artes plásticas. Várias referências históricas (imagens documentais da segunda guerra) e estéticas (livros de arte renascentista, quadros) são intercaladas com a história pessoal de Alexei. Em termos estéticos, chama-nos a atenção à seqüência de Alexei adolescente na sala da casa da senhora para quem sua mãe foi vender um par de brincos. O enquadramento, a luz e o figurino reproduzem dinamicamente a pintura do holandês Johannes Verneer A Moça com Brinco de Pérola (1632). Durante toda esta longa seqüência, Alexei, através do espelho, parece ele próprio fazer parte de um quadro… de uma natureza morta, em que o leite – símbolo da vida – é figura marcante.
Ao final do filme, Alexei está deitado em sua cama, doente (é a única vez que alguma parte do corpo dele aparece em cena, embora o rosto jamais seja visto), assistido por duas senhoras e pelo médico. No diálogo que aí acontece, o médico argumenta ser comum um homem, ainda que saudável, falecer após a perda da mãe, da esposa e do filho – como que justificando a escolha de Tarkovski por uma estratégia narrativa que mostra o protagonista através do olhar dessas três personagens fundamentais. Elas são o espelho de Alexei. Entretanto, a personagem que parece ter mais poder sobre Alexei é aquele de quem só se ouve a voz. É aquele com quem não há diálogo, mas cuja palavra é encantada em poesia: seu pai. Infelizmente, para o público brasileiro que não domina o russo e que tem que dividir a atenção entre a legenda e as belas imagens de Tarkovski, os poemas de seu pai não são plenamente fruídos. Enfim, é mais um desafio para decifrarmos – e desfrutarmos de – O Espelho.
O Espelho (Zerkalo)
Direção: Andrei Tarkovski
Roteiro: Andrei Tarkovski e Aleksandr Misharin
Com: Margarita Terekova, Ignar Daniltsev, Larisa Tarkovskaya e Allá Demidova
País: Rússia
Ano de lançamento: 1975
Disponível em DVD no Brasil
Duração: 108 minutos