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Publicado por em set 1, 2022 em Críticas, Festival de Gramado |

Afeto e diversidade no novo cinema brasileiro, por Luiz Carlos Merten

Noites Alienígenas, de de Sérgio de Carvalho – Divulgação.

Havia dois grandes filmes na competição brasileira do 50º Festival de Gramado. Jubileu de ouro – 50 anos! Um desses filmes veio do Acre e, para muita gente, Gramado 50 marcou a descoberta dessa cinematografia ainda pouco conhecida, mas potente. Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho, baseado no romance do próprio diretor, venceu os Kikitos do júri oficial e da crítica. O outro destaque dessa edição foi o longa mineiro, de Contagem, Marte Um, de Gabriel Martins, que venceu o prêmio do público. Havia um filme belíssimo na Mostra Gaúcha, Cinco Casas, e já é mais do que tempo de Gramado começar a discutir uma reserva de mercado da produção regional em Gramado. O longa de Bruno Gularte Barreto poderia estar muito bem na competição principal. Na mostra estrangeira, brilhou o uruguaio 9, da dupla Martín Barrenechea/Nicolás Branca.

Gramado orgulha-se de ser o festival mais longevo do país que nunca sofreu descontinuidade. Em suas diferente seções, espelhou a diversidade da produção nacional. A seleção contemplou o que já foi chamado de novo cinema brasileiro. Noites Alienígenas aborda o avanço da criminalidade – as gangues, as drogas – na Amazônia, mas o tema, na real, é a floresta (e seu mistério). A mãe, na tentativa de salvar/proteger o filho, leva-o ao xamã. Marte Um é sobre família. A mãe, vítima de uma pegadinha, desestabiliza-se, a filha sai do armário. Uma cena já nasceu antológica – a filha leva a namorada – a ‘amiga’ – para conhecer os pais. Dão-se as mãos. Corte para os rostos dos pais. A surpresa, o estranhamento. Nada que não possa ser resolvido, e aceito. O choque é entre pai e filho. O sonho do pai é ver o filho jogando no Cruzeiro. A proximidade do teste para escolher futuros craques o anima, mas o sonho do filho é outro – ele quer participar da missão espacial da Nasa que vai iniciar a colonização de Marte.

Marte Um começa com uma informação que poderia ser preocupante – a eleição de Jair Bolsonaro. O filme é um pouco sobre o que perdemos nesses quatro anos. Churrascos, rodas de samba. Lula lá! Marte Um e Noites Alienígenas celebram famílias periféricas, afirmações identitárias – pretos, mulheres, povos originários. Outra mãe, Marcélia Cartaxo, também busca o filho no longa de Cristiano Burlan. O primeiro longa de ficção de um dos mais premiados documentaristas brasileiros estrutura-se nas bordas. A parte documental talvez seja mais forte do que a ficcional em A Mãe, mas o movimento é o mesmo dos filmes já assinalados. Dar voz à periferia, aos excluídos. O cinema alinha-se à luta pela inclusão. Nesse quadro – filmes realistas, pessimistas -, o alívio veio das Gerais. Humor + melodrama. A Filmes de Plástico fez sua aposta no afeto. Havia muita gente chorando no final de Marte Um, inclusive o autor do texto. A família Martins foi contemplada com os Kikitos de coadjuvantes. Com todo respeito pelos vencedores dos prêmios de melhor ator e atriz, o pai e a mãe foram gloriosos. Marcélia há de me peredoar. Venceu o Kikito que eu, pessoalmente, daria para Rejane Faria.

Minas, Contagem. A Mostra Aurora, de Tiradentes, colocou no mapa do cinema brasileiro essa cidade da Grande BH. Um cinema de bróders, de amigos, que já produziu seus clássicos e está levando a festivais da Europa e circuitos de arte dos EUA autores como Affonso Uchôa e João Dumans. Arábia foca na questão do trabalho, e do trabalhador. Retoma, em outro nível e contexto, o tema da consciência social e política de Leon Hirszman, Eles não Usam Black-Tie. O novo cinema brasileiro nutre-se do Cinema Novo. Reinventa-o – ultrapassa-o? Pais e filhos. No longa uruguaio, como no mineiro, o garoto, camisa 9, tem de decidir se vai viver a própria vida ou a que o pai, seu empresário, deseja para ele. A casa, num condomínio de luxo, constrói seu isolamento. A casa vazia pode ser preenchida com objetos, mas as relações? A casa é uma personagem tão importante como o jogador em 9.

Devassada, imensas paredes de vidro – o garoto está sendo crucificado por uma agressão em campo que não vemos, também não vemos os jogos. E ele, o guri, sai do armário onde se escondeu para descobrir o amor, o afeto, com a garota rebelde. Apesar do título – Noites Alienígenas – o óvni desse festival não foi bem o filme do Acre, mas a produção carioca A Porta ao Lado. Parece fácil – dois casais, em apartamentos lado a lado, de repente o sexo se imiscui nas relações. Sem pudor, Júlia Rezende e sua atriz, Letícia Colin, expressam o desejo feminino. O que querem essas mulheres? Plateias masculinas reagem diferentemente das femininas. Letícia tem o marido perfeito, mas, apesar disso, experimenta um vazio existencial – uma insatisfação? – que a coloca nos braços do vizinho. Esse marido é preto. Tenta ser o melhor em tudo, e talvez seja, mas isso não garante a estabilidade da relação.

O filme mais injustiçado da edição de 50 anos talvez tenha sido O Último Animal, que o português Leonel Vieira realizou no Rio e integrou a competição internacional. Literalmente, é um filme que se pretende de choque. Começa com uma colisão de veículos – Amores Brutos, de Alejandro González-Iñárritu? O dono do morro tem um irmão que não compactua com suas atividades criminosas. Como Michael Corleone na saga de mafiosos de Francis Ford Coppola ele se tornará – como, por que? – o poderoso chefão. A grandeza, nesse filme sobre relações perversas e ligações escabrosas, vem do personagem que parece o mais sórdido. O gringo, mesmo ao descobrir que foi traído pela mulher, trata de garantir sua segurança. A mulher forte é uma trans. Para ser completamente honesto, boa parte da crítica achou o filme cheio de clichês, convencional. Viram outro filme, não quiseram ver o do autor, com certeza.

Para terminar, os curtas. Nenhum outro autor atuante no gênero – formato? – ousa mais do que Carlos Adriano. Mais uma vez ele foi brilhante em Tekoha. O título refere-se à terra indígena, segundo os guaranis-kaiowás. Como sempre, bastam alguns fragmentos de filmes para que Carlos Adriano teça uma dupla reflexão – sobre o massacre dos povos originários e a linguagem do cinema, a sua ferramenta. A surpresa dos curtas foi Fantasma Neon, de Leonardo Martinelli. Um musical, com muito canto e dança, sobre entregadores de aplicativos. Irresistível.

Por Luiz Carlos Merten