Diversidade de Propostas nos Curtas-Metragens
Por Marcus Mello
A competição nacional de curtas na 38ª edição do Festival de Gramado foi ampliada de 12 para 16 títulos, e caracterizou-se pela diversidade de propostas estéticas, incluindo desde o diálogo com o cinema de gênero (Ratão, de Santiago Dellape) a propostas mais radicalmente autorais (Haruo Ohara, de Rodrigo Grota). Diversidade essa que está relacionada ao tradicional ecletismo das comissões de seleção, quase sempre formadas por profissionais com distintas visões de cinema e de mundo (posso afirmar isso com autoridade, justamente por haver participado do grupo responsável pela seleção dos curtas concorrentes este ano).
Em linhas gerais, os filmes mais bem logrados tiveram seu mérito reconhecido pelo resultado da premiação. A começar pelo já citado Haruo Ohara, que magnetizou a todos com o rigor de sua encenação, valorizada pela deslumbrante fotografia em preto e branco assinada pelo mestre Carlos Ebert (o mesmo de O Bandido da Luz Vermelha). O imaginário do fotógrafo Haruo Ohara foi captado com rara felicidade por Grota, que fecha em alto tom sua “Trilogia do Esquecimento”, formada ainda por Satori Uso (2007) e Booker Pittman (2008), também apresentados em Gramado em anos anteriores. Apenas por este vigoroso conjunto de curtas o jovem diretor de Londrina garante seu posto entre os nomes promissores do novíssimo cinema brasileiro.
Os comentários entusiasmados a respeito das qualidades de Haruo Ohara tornaram ainda mais surpreendente a divisão do prêmio de melhor curta com Carreto, sensível filme de Cláudio Marques e Marília Hughes sustentado pela presença cativante de sua dupla de protagonistas mirins. A gritante diferença de propostas dos dois filmes escancara uma atitude preguiçosa do júri, que se demonstrou incapaz de decidir entre um deles. Aliás, tal postura precisaria ser impedida pelo regulamento do festival, a fim de valorizar a premiação, que acaba fragilizada em virtude da hesitação de suas comissões julgadoras. Com tão poucos filmes em competição, os jurados deveriam trabalhar para executar a tarefa para a qual foram convocados. Sim, um festival não é um campeonato de futebol, mas a premiação tem um peso simbólico que não pode ser desprezado. Caso contrário, façamos uma mostra não competitiva, nos moldes de Festival de Curtas de São Paulo.
Se ficou nas boas mãos de Haruo Ohara e Carreto, o Kikito de melhor curta também poderia ter ido para Babás, de Consuelo Lins, ou Ninjas, de Dennison Ramalho. O primeiro, vencedor do prêmio da crítica, é um contundente documentário que desnuda as ambíguas relações de classe, poder e afeto entre as babás e suas famílias no Brasil. A exemplo do Santiago, de João Moreira Salles, mais um filme esclarecedor sobre a elite brasileira e seus recalques escravagistas, no qual o tema é abordado com a devida complexidade, inclusive pela coragem da diretora em colocar-se como personagem diante das câmeras. Já Ninjas chocou a audiência com suas cenas de violência e sustos bem orquestrados, confirmando o excepcional talento de Dennison Ramalho para manipular os códigos do cinema de gênero. Embora tenha afirmado que Ninjas quer ser “apenas um filme de terror”, Ramalho faz com que seu próprio tiro saia pela culatra, pois cada plano de seu exasperante curta está aí para comprovar que Ninjas é muito mais do que um mero filme de terror. Através da história do policial assombrado pelo fantasma de um menino que matou durante uma operação mal sucedida na favela, Ramalho explicita o horror vivido pelas populações obrigadas a enfrentar cotidianamente o ambiente de guerra civil provocado pelos embates entre policiais e traficantes nas periferias brasileiras. O resultado final é um retrato apavorante da realidade social do País, bem mais eficaz que muitos Tropa de Elite, turbinado por uma atuação visceral de Flávio Bauraqui, merecidamente reconhecido com o Kikito de melhor ator.
Haruo Ohara, de Rodrigo Grota
Além de Flávio Bauraqui, que é natural de Santa Maria, outros gaúchos fizeram bonito na competição de curtas: Amigos Bizarros do Ricardinho, de Augusto Canani, e Um Animal Menor, de Pedro Harres e Marcos Contreras, não apenas colecionaram elogios mas também levaram para casa prêmios importantes como melhor direção de arte (para Vicente Saldanha, em Amigos Bizarros do Ricardinho) e melhor atriz (para Elisa Volpato, em Um Animal Menor). Augusto Canani faz de Amigos Bizarros do Ricardinho uma comédia agridoce sobre as agruras do mundo do trabalho, sem deixar de lançar um comentário irônico a respeito da futilidade e platitudes do meio publicitário. Egressos da primeira turma de cinema formada no Rio Grande do Sul, Pedro Harres e Marcos Contreras mostraram que fizeram a lição de casa com seu curta de estreia. As dificuldades naturais impostas pelo argumento de Um Animal Menor, que coloca em cena o tempo inteiro uma mulher presa num poço, são dribladas com habilidade pela dupla de diretores. A decupagem precisa, o desempenho de Elisa Volpato e a atmosfera de huis clos que remete ao teatro de Samuel Beckett revelam o potencial de dois autênticos novos talentos do cinema gaúcho.
O carioca Cavi Borges encantou com o bossa-novista Em Trânsito, melancólico flagrante realizado em preto&branco em torno do encontro/desencontro de um casal no Rio de Janeiro. Também merecem ser destacados os curtas Naiá e a Lua, de Leandro Tadashi, e Pimenta, de Eduardo Mattos, que ilustram bem os acertos do edital Curta Criança, criado pelo Ministério da Cultura para fomentar a criação de conteúdo infantil para cinema. Leandro Tadashi mescla atores e animação para encenar de forma lírica a lenda indígena sobre o surgimento da vitória-régia, enquanto Eduardo Mattos promove uma evocação familiar nostálgica – e autobiográfica – ao mostrar uma história de reconciliação com a figura paterna. Ainda na seara infantil, a animação Os Anjos do Meio da Praça, de Alê Camargo e Camila Carrossine, impressionou por seu virtuosismo, com suas criaturas azuis que lembram os personagens de James Cameron em Avatar.