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Publicado por em mar 23, 2014 em Artigos |

Dois documentários musicais e a recuperação da cultura brasileira (sobre Cantoras de Rádio e Wilson Simonal…)

cantoras_de_radiopor André Kleinert

É tema recorrente em cadernos culturais brasileiros a questão da nossa falta de memória cultural, no sentido de que não valorizamos o patrimônio artístico do passado, relegando o mesmo a um tenebroso esquecimento. No meu entendimento, esse tipo de taxação costuma ser exageradamente apocalíptica. Não que não tenha algo de realmente verdadeiro na afirmação, afinal, como já dizia o historiador Eric Hobsbawm no brilhante livro

A Era dos Extremos, para boa parte das pessoas os anos 60 do século XX já são a pré-história. Mas se observarmos, pelos menos, esses últimos 10 anos, ficam visíveis várias iniciativas de resgates de manifestações artísticas diversas e marcantes da história cultural brasileira, tanto por parte da mídia quanto por ações de instituições e corporações públicas e privadas, passando até mesmo pelo trabalho estóico e apaixonado de pessoas que são simplesmente interessadas no assunto. A música é exemplo claro dessa postura. Na presente década, presenciamos o relançamento por parte de diversas gravadoras, multinacionais ou independentes, de várias obras fundamentais em CD, e que estavam inéditas nesse formato, fazendo a alegria não apenas de colecionadores, mas possibilitando também que novas gerações tivessem acesso a discos maravilhosos e obscuros de gente como Tom Zé, Novos Baianos, Rosinha de Valença, João Donato, Cassiano, e uma lista quase infindável de outros nomes igualmente importantes. Isso sem falar, ainda, na Internet, que oportunizou, através de sites como You Tube e Orkut, a disponibilização para apreciadores da música brasileira de discos fora de catálogo e imagens raras que já se julgavam perdidas.

Essa iniciativa de valorização da música brasileira também tem sido compartilhada com o nosso cinema. É só dar uma rápida examinada na cinematografia nacional desses últimos anos e constatar o lançamento de bons documentários que tem a música como atração principal, vide filmes como O Mistério do Samba (2008), Fabricando Tom Zé (2007), Cartola – Música Para os Olhos (2007), Paulinho da Viola – Meu Tempo é Hoje (2003), Botinada (2006). E é claro que não dá para esquecer os dois belos filmes do cineasta finlandês Mika Kaurismäki sobre o tema em questão, Moro no Brasil (2002) e Brasileirinho (2007). Nesse último Festival Internacional de Cinema de Porto Alegre, ocorrido em março de 2009, tive a oportunidade de assistir a mais duas obras dessa vertente, que variavam nas suas qualidades artísticas, mas que são imprescindíveis como testemunhos históricos.

O primeiro deles, Cantoras do Rádio (2008), dirigido por Gil Baroni e Marcos Avellar, focaliza aquele período histórico, das décadas de 30 a 50, em que predominavam nas ondas sonoras uma série de cantoras que interpretavam o que havia de melhor no nosso cancioneiro popular. Um dos principais fatores que motivou a realização desse documentário foi o sucesso artístico e comercial do recente show Estão Voltando as Flores, espetáculo organizado por Ricardo Cravo Albin, dedicado e experiente estudioso da música brasileira e editor e redator do excelente Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira, e que trouxe de volta para os palcos as veteranas crooners Carmélia Alves, Carminha Mascarenhas, Violeta Cavalcanti e Ellen de Lima. No documentário, a narrativa se concentra nos depoimentos dessas artistas, que falam sobre as histórias de suas vidas e também contam alguns “causos” da época em que eram soberanas nas rádios e nos palcos. Além disso, Cantoras do Rádio traz relatos do próprio Cravo Albin e outros admiradores desse fundamental e marcante período da música brasileira e oferece um breve painel biográfico de outras artistas importantes do movimento (Carmem Miranda, Aracy de Almeida, Aurora Miranda, Dalva de Oliveira, Dolores Duran, Elizeth Cardoso, Linda e Dircinha Baptista, Isaura Garcia e Nora Ney).

Apesar da riqueza desse material temático, Cantoras do Rádio tropeça como espetáculo cinematográfico. Os diretores abusam de uma narrativa didática que por vários momentos cai no enfadonho, além de contarem com uma edição que parece ter sido feita às pressas. A utilização de efeitos especiais chega ao nível do constrangedor: não se sabe se a intenção era que fosse ruim mesmo visando obter um efeito cômico ou se simplesmente o nível de competência nesse quesito é precário mesmo. Há também um equívoco no tom de abordagem escolhido para se falar sobre o tema do filme, pois predomina um certo teor lamentoso que cai em reclamações ingênuas e estéreis do tipo “por que fomos esquecidas?” ou “por que não cantamos mais nas rádios?”.

Ora, são pouquíssimos os gêneros e artistas que conseguem se manter no topo de popularidade por um longo período de tempo, sendo que com o passar dos anos é normal que sejam apreciados apenas por determinados nichos de público. Isso não quer dizer, entretanto, que isso ocorra necessariamente por uma questão de qualidade artística, mas sim porque a passagem do tempo é implacável, e o que fazia sentido para um contexto histórico não faz mais para outro contexto que se sucede. É claro que esse sentimento de melancolia por um “tempo que não volta mais” é normal. Não é necessário, entretanto, que se bata insistentemente nessa tecla. E o próprio fato das protagonistas terem conseguido obter um certo reconhecimento através do recente espetáculo mencionado mostra que a situação atual delas não é tão inglória assim. Pessoalmente, acho que teria sido muito mais cativante para a narrativa se o roteiro tivesse se concentrado em esmiuçar de forma mais bem humorada e vivaz todas as particularidades históricas e comportamentais do período do auge das cantoras de rádio, até porque os depoimentos e o material de arquivo nesse quesito seriam mais que propícios para esse tipo de abordagem. Mesmo assim, com todos esses problemas, Cantoras de Rádio é uma obra que vale uma conferida por todos aqueles que se interessam pela música brasileira e por História em geral.

150x210-images-stories-wilson_simonalJá Wilson Simonal – Ninguém Sabe O Duro Que Dei (2008), dirigido pela trinca Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, é uma experiência cinematográfica bem mais satisfatória. A dinâmica obtida pela combinação entre depoimentos atuais e um farto e impressionante material de arquivo de vídeos e imagens de época é extraordinária, num belo trabalho de montagem e de elaboração de roteiro. A narrativa obedece ao tradicional formato “ascensão, apogeu e queda” (até porque com uma figura com o histórico de Simonal não poderia ser diferente), mas faz com extrema competência, dando até uma dimensão épica e trágica para o cantor. A primeira metade do filme é de uma alegria contagiante ao mostrar o auge de Simonal como um dos maiores astros musicais brasileiro, ao lado de Roberto Carlos, de fim dos 60 e começo dos 70, sendo repleto de momentos antológicos: os engraçados números musicais em seu próprio programa de televisão, o artista regendo uma platéia de dezenas de milhares no Maracanazinho cantando “Meu Limão, Meu Limoeiro”, o fabuloso dueto vocal com a diva Sarah Vaughan, as abusadas e irônicas entrevistas concedidas pelo cantor na época. Em compensação, a metade final é uma verdadeira descida aos infernos mostrando a decadência artística de Simonal, após a até hoje mal explicada acusação de que seria informante da ditadura militar.

O contraste dos tristes episódios desse período de queda de Simonal com a esfuziante alegria dos seus melhores dias é brutal. Por mais que se tente dissecar no filme a verdade sobre a acusação que pesou sobre o cantor pelo resto da sua vida, a realidade é que os fatos relativos a tal assunto permanecem obscuros e envoltos em interpretações subjetivas, o que acaba refletindo a complexidade de um dos períodos mais conturbados da história brasileira. Talvez a única conclusão a que podemos chegar através do filme é de que, independente dele ser culpado ou inocente da acusação que sofreu, o castigo que Simonal sofreu foi pesado demais, não só para ele como para todos aqueles que gostavam, e ainda gostam, da sua música.

Curiosamente, Cantoras do Rádio e Wilson Simonal – Ninguém Sabe O Duro Que Dei possuem como ponto em comum o fato de dois indivíduos muito especiais, Ricardo Cravo Albin e Chico Anysio, darem depoimentos preciosos em ambos os filmes. E mesmo que variem na qualidade de seus méritos, tais produções também se assemelham pelo fato de serem obras que contribuem para afastar um pouco mais aquela velha máxima que mencionei no começo desse texto.