Dor e Glória, o exercício de lidar com a perda
Por Rafael Valles
Ao analisar a obra de Almodóvar, não faltariam adjetivos para descrevê-la: melodramático, intenso, trágico, provocador. Todos esses termos identificam tendências nos seus filmes, mas também caem em lugares comuns identificáveis por qualquer espectador que tome conhecimento de sua obra. Um caminho interessante para descobrir mais a fundo a filmografia de Almodóvar está na forma como os seus personagens são construídos. Venho aqui falar sobre uma questão que percorre as suas produções e também se faz presente no seu mais novo filme, Dor e Glória (2019).
Almodóvar é um cineasta que reflete constantemente sobre a questão da perda. Em Tudo sobre minha mãe (1999), Manuela perde o seu filho, Esteban, quando este, no dia do seu aniversário, é atropelado por um carro; isso faz com que ela retorne para Barcelona, 18 anos depois, para reencontrar o pai de seu filho. Em Fale com ela (2002), ao ser acusado por supostamente ter estuprado e engravidado a paciente Alicia – que se encontra em estado vegetativo – Benigno perde a possibilidade de seguir trabalhando no hospital como seu enfermeiro particular, o que faz com que ele seja preso e tome a atitude radical de buscar o suicídio. Em a Lei do desejo (1987), sob a trilha sonora de Ne me quite pás (Não me deixe) o personagem cineasta Pablo Quintero vive as desventuras da morte do seu amante Juan e precisa lidar com a perda de memória em decorrência de um acidente de carro. Em Má Educação (2004), a perda expressa-se em palavras quando o personagem de Ignácio afirma que “acabou de perder a fé” no momento em que deixou de acreditar em Deus e no inferno, em decorrência das ações pedófilas que o Padre Manolo – diretor do colégio religioso em que estudava – , praticava com ele.
São muitos os exemplos que elucidam essa característica intrínseca aos personagens de Almodóvar. Ao depararem-se com a perda e não conseguirem lidar com isso, os personagens desestabilizam-se, buscam soluções impulsivas e, com isso, o sentido dramático se acentua e o melodrama se instala. Seguimos, então, as suas trajetórias, identificamo-nos com as suas fraquezas, viramos cúmplices dos seus equívocos. Diante da perda, esses personagens lidam com provações que, muitas vezes, acabam testando limites morais, éticos. Com isso, entramos nesse jogo singularmente catártico que os seus filmes produzem.
Dor e glória é um filme que não foge a essa questão. Pelo contrário, agrega a ela mais elementos. O mais novo filme de Almodóvar é constituído, a todo momento, pelo sentimento de perda. Salvador Mallo é um cineasta que não somente encara a perda da sua vitalidade física e criativa, como ainda procura lidar com a perda da sua mãe. Envolto num estado de luto, com depressão, dores lombares, tendinite nos joelhos, enxaqueca e dores nas costas, Salvador é uma coleção de males que o constituem como um personagem opaco, sem motivações para enfrentar essas adversidades. Trata-se de um personagem que vive um luto de si, que entende as suas limitações físicas e emocionais, mas que não encontra caminhos para superá-las. Ou, melhor dizendo, encontrará um caminho para isso através da heroína.
Almodóvar constrói aqui um belo paradoxo: a mesma heroína que o aprisiona ao vício é também a que o libera da sua condição de passividade frente à vida. O consumo da droga torna-se não somente uma adição que acentua às suas debilidades físicas e emocionais, como também aponta em direção às suas memórias de infância. Estabelece-se aqui uma estrutura que irá transcorrer ao longo do filme todo, a relação entre o estado de letargia de Salvador, hoje, com as memórias da sua infância.
Salvador reencontra, nas memórias, o lugar onde viveu sua infância, as vivências que teve com sua mãe, o encontro com o operário a quem ensinou a ler e escrever, assim como as sessões de cinema que “sempre estavam ligadas à brisa das noites de verão”. São lembranças que remetem a uma pureza dos afetos, a uma idealização dessa etapa de vida, mesclando-se com descobrimentos que mais adiante determinariam a sua formação. Trata-se de sequências em que a acentuação do branco nas paredes da casa, o minimalismo na decoração do local e a sobriedade do vestuário dos personagens acabam contrastando com o excesso de cores e objetos que caracterizam muitos dos filmes de Almodóvar (e que também se fazem presentes nas cenas de Salvador adulto).
Em contraste com essas lembranças, o que vemos nas sequências de Salvador adulto são caminhos mais ásperos. O reencontro dele com o ator Alberto – protagonista do filme Sabor, que Salvador dirigiu 32 anos antes – acaba sendo bastante revelador nesse sentido. O que era para ser uma reconciliação entre ambos desde o primeiro encontro deles após o lançamento do filme, acaba sendo um convite para dividirem o vício pela heroína e para voltarem a se desentender durante a “áudio conferência” que realizaram durante o evento de relançamento do filme. Da mesma forma, o reencontro com lembranças recentes dele – Salvador – já adulto com sua mãe idosa, também revela questões mal resolvidas. “Sinto muito por não ter sido o filho que você desejava” – afirma o personagem – “Quando você dizia ‘a quem esse menino puxou?’, não dizia isso com orgulho, e eu percebia”. Nessas lembranças recentes, também se evidenciam as distâncias afetivas entre mãe e filho que pouco fazem alusões às memórias de Salvador quando garoto.
O reencontro com Federico, com quem manteve uma intensa relação amorosa, também evidencia o contraste entre um Salvador envolto na sua solidão, cercado por quadros pictóricos que decoram a sua casa como se fosse um museu, em relação ao seu ex-amante. Após ter deixado o vício das drogas, ter casado e tido filhos e ter conseguido reconstruir a sua vida na Argentina, Federico serve aqui como um espelho que confronta Salvador. A cada diálogo entre ambos, evidencia-se como seu ex-amante conseguiu levar a vida adiante, e como o cineasta se depara com uma vida em declínio.
A cada reencontro de Salvador com a sua própria existência, com os personagens que atravessaram a sua trajetória, sobressai ainda mais o quanto ele foi perdendo a si próprio nesse percurso. Almodóvar pontua bem essa questão na sequência em que Salvador se despede de Federico e, logo em seguida, joga pela privada o estoque de heroína que tinha guardada. Ao decidir romper com o vício, consultar um médico e se reencontrar com a escrita, Salvador também rompe com o seu estado de letargia. É através desse desenlace – que confere um caminho de redenção ao personagem – que Almodóvar realiza um poético exercício metalinguístico ao final do filme, quando procura costurar as recordações de infância de Salvador com o registro das imagens do próximo filme que o protagonista de Dor e Glória está realizando.
Dor e Glória é um filme cuja sobriedade de tons narrativos também contrasta com os filmes anteriores do diretor espanhol. Sem grandes reviravoltas ou revelações que possam mudar o rumo da história, Almodóvar aposta num relato mais minimalista, em que se acentuam mais os personagens e os seus conflitos, em vez da trama que os condiciona. Por outro lado, ao assumir um sentido confessional, parece existir um desejo de Almodóvar em transitar entre as diversas camadas do eu que constituem a autoficção. O diretor procura revisitar não somente a sua trajetória pessoal, mas, sobretudo, a sua trajetória como cineasta.
Na cena em que Salvador aceita repassar o seu texto confessional que escreveu para Alberto representá-lo no teatro, é revelador como as indicações que o personagem cineasta faz para o ator têm muito de autorreflexão e autoironia sobre a própria obra de Almodóvar. “Sobre o cenário, eu sugiro um palco vazio, uma tela. Uma cadeira, se não souber o que fazer com as mãos e os braços. […] Depois de corrigi-lo, sei que o texto ficou um pouco melodramático. […] É por isso que digo, evite o sentimentalismo. Controle a emoção. Não chore, os atores aproveitam qualquer pretexto para chorar. O melhor ator não é aquele que chora, é o que luta para conter as lágrimas”. Dor e Gloria é também um exercício de contenção dessas lágrimas, de uma busca constante por refletir sobre a passagem do tempo, sobre o caminho de descobrimentos e perdas que constituem a vida, sem cair em soluções fáceis ou sentimentalismos, sem se render ao mero registro confessional.