Entre Lúcida e Rosinha, por Ivonete Pinto
Lúcida (SP), curta-metragem dos diretores Fábio Rodrigo e Caroline Neves, é de um arrojo formal e de uma contundência temática poucas vezes vista no Festival de Cinema de Gramado. Há quem o tenha odiado (termo usado por um convidado chileno do festival em conversa informal) por entender que o filme explora a miséria. Um estrangeiro talvez não tenha condições de atentar para a densidade e à carga de verdade que está em cena. Em enquadramentos rigorosos, plásticos e informativos, vemos a solidão em curso de uma mulher abandonada pelo pai de seu filho recém-nascido. Uma progressão construída ao reverso do tempo: conhecemos como a mulher chega no atual estado de desespero por imagens do bebê registradas em celular e imagens de ecografia do feto. Também temos acesso aos sentimentos do jovem mostrados de maneira não plana, ou seja, alguém que expõe seus motivos para não querer ser pai, sem sentimentalismo ou julgamento. O cenário é um casebre na periferia de São Paulo, onde, até antes das filmagens, viveram os protagonistas e diretores do filme e seu bebê. Fábio Rodrigo, diretor negro de origem pobre, formado em cinema graças a uma bolsa do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, é marido de Caroline Neves, atriz e montadora do curta.
O filme fala por si, mas se acrescido do extrafílmico que envolve os realizadores, temos uma dimensão maior e mais aproximada do seu universo diegético. Mesmo que seja uma ficção, há algo ali que impacta o espectador, que ultrapassa o mero realismo e penetra na realidade da experiência vivida. Fosse exploração da miséria, como viu o chileno, Lúcida não traria personagens tão complexos como uma mulher em profunda crise de depressão e um jovem com dúvidas existenciais. É preciso que realizadores como este casal, vindos de um extrato diverso do habitual de quem faz cinema no Brasil, nos diga que estes componentes psicológicos do filme são verossímeis. Trata-se de um filme raro, incomum e com uma força que impressiona.
Lúcida ganhou o Prêmio da Crítica (ACCIRS), sensível ao poder da proposta. Outros júris, o oficial e o do Canal Brasil, optaram por Rosinha (DF), de Gui Campos. Como participante da Comissão de Seleção dos Curtas Brasileiros e do júri do Canal Brasil, é possível afirmar que Rosinha, com justiça, pode ser defendido como um belo filme, competente em seu formato: em poucos minutos, a narrativa enxuga o relacionamento de um casal de idosos, onde integra-se um terceiro idoso formando um Dona Flor, um Jules e Jim ou outra comparação qualquer adaptada à terceira idade. Um filme-piada bem resolvido, num desfecho com um humor e uma leveza que calham bem no equilíbrio da programação de um festival com curtas e longas no mesmo dia. Um filme para o público apreciar, mas não necessariamente para a crítica destacar. Conclusão: o reconhecimento ao curta de Fábio Rodrigo e Caroline Neves veio de onde se esperava que viesse. E está tudo certo.