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Publicado por em mar 24, 2014 em Artigos |

Estrada, solidão, música e Wim Wenders

por Marcelo Oliveira da Silva

9Foi talvez no sábado seguinte ao 14 de agosto do seu décimo segundo aniversário, há 51 anos, que o menino Ernst Wilhelm, desde sempre apelidado Wim, fez seu primeiro filme. Revelado o conteúdo da câmara 16mm, o que mais intrigou o cirurgião Heinrich Wenders foi a absoluta falta de cortes. Por três minutos, tudo que se via era a paisagem registrada desde um ângulo fixo na sacada de sua casa em Oberhausen, cidade pequena, sede do mais antigo festival de cinema da Alemanha.

Corte para 1970. Wim tem 25 anos, já bandonou as faculdades de medicina e filosofia, já desistiu de ser pintor em Paris, onde acabou seduzido pelas sessões da Cinémathèque Française, em que assistia filmes de manhã à noite. Saiu de lá ao ler um anúncio da Faculdade de TV e Cinema de Munique. Seu filme de formatura, Verão nas Cidades, está na mesa de corte. Apesar de longo (teria 2h30min,), o montador que monitora o trabalho aceita os oito minutos e meio sem cortes de um passeio de carro que percorre toda a avenida mais chique de Berlim. Adiante viria a imagem de um túnel, também atravessado de carro, que durava um minuto. O idoso senhor não se contém. Wim responde que o túnel tinha 800m e que, naquela velocidade, a travessia durava 1min. Precisou terminar a montagem sozinho.

A câmara fixa num tripé ou num automóvel inha uma vantagem decisiva: economia de custos. Os cortes escassos arepresentavam uma revalorização da verdade, violentada por uma década e meia de propaganda nazista. O que na época ganharia nos festivais internacionais o pomposo nome de “estilo muniquense” era também resultado da carência de recursos num país que ressurgia das ruínas. Colega e em muitos casos sócio de Fassbinder, Werner Herzog e Schlöndorff, outros emergentes do Novo Cinema Alemão, Wenders seria também protagonista de uma revolução na linguagem fílmica que amadurecia em vários países desde os anos 60.

Entretanto, se aquela geração hesitava diante da cultura pop americana, agarrando-se à filmagem de cânones literários do Velho Mundo, a fascinação de Wenders pela música, pelos ambientes e pela paisagem dos EUA se revelaria mais ao gosto da juventude européia. Depois de fracassar na adaptação do romance A Letra Escarlate (1972), de Nathaniel Hawthorne, ele promete “não mostrar mais nada que não sejam automóveis, estradas, postos de gasolina, motéis e neons”.

É com Alice nas Cidades (1973) que experimentaria um ingrediente central de seu estilo, os filmes de estrada, cuja trilogia se completa com Movimento em Falso (1975) e No Decorrer do Tempo (1976), inspirado no cineasta japonês Yasujiro Ozu. Porém, o financiamento estatal era mais fácil para filmes baseados em livros. Antes de soltar-se na encenação de histórias originais, Wenders ainda penaria um tempo com isso, eventualmente acumulando achados.

Em Movimento em Falso, livremente baseado em Wilhelm Meister, de Goethe, ele revelaria uma carreira para Nastassja Kinski e fortaleceria sua parceria com o escritor Peter Handke, parceiro dos primeiros curtas e seu amigo mais antigo. Em O Amigo Americano (1977), literalmente ressuscitaria o lendário Dennis Hopper e desse livro de Patricia Highsmith guardaria um princípio: “As histórias dela não psicologizam. Não derivam de nenhuma lei, tudo é uma singularidade e cada um é singular, sem generalizações”.

A última encomenda no gênero seria traumática: a recriação da vida do escritor Dashiell Hammett, O Falcão Maltês (1982), sua primeira aventura hollywoodiana. Seu produtor, Francis Ford Coppola, à bancarrota, colocava e tirava dinheiro e atores do filme, que consumiu quatro anos. Nas muitas folgas dessa época, Wenders desenvolveria outra assinatura sua, os roteiros abertos, costurados ao sabor das conveniências de cada filme.

Avolta por cima viria com O Estado das Coisas (melhor direção em Veneza, 1982), autobiográfico, sobre a feitura de filmes sem nenhum dinheiro. Logo vem Paris, Texas (melhor filme em Cannes, 1984) e Asas do Desejo (melhor direção em Cannes, 1987). Esses dois sucessos foram o ápice de sua capacidade de sintetizar em cenas quase domésticas situações grávidas de significado para personagens carentes de um destino. Em Paris, Texas, após anos dormindo cada noite num motel diferente, o personagem de Harry Dean Stanton volta à casa do irmão, que cria seu filho, e prepara-se para passar a primeira noite ali.

À beira da cama, ele contempla os chinelos trazidos pela cunhada e alinha-os lado a lado, milimetricamente. Sem que se diga nada, percebemos que ele analisa a troca de anos na estrada por aquela vidinha burguesa. A década seguinte não seria tão exitosa. Com Até o Fim do Mundo (1991) e O Fim da Violência (1997), Wim seria acusado de incorporar aquilo que mais criticara na juventude: orçamentos e atores caros em filmes vazios. Buena Vista Social Club (1998), O Hotel de Um Milhão de Dólares (2000) e Estrela Solitária (2004) interessaram de novo público e crítica.

Wenders filmou também várias homenagens de grande apuro estético. Começou com Filme de Nick (1980, réquiem para os últimos dias do cineasta Nicholas Ray, diretor do eterno Rebelde Sem Causa, de 1955). Depois vieram Quarto 666 (1982, série de entrevistas com outros cineastas sobre a influência da tevê), Tokyo-Ga (1985, sobre o mestre Ozu), Caderno de Notas sobre Roupas e Cidades (1989, sobre Tóquio e o estilista Yohji Yamamoto), O Céu de Lisboa (1994, com o diretor português Manuel de Oliveira), Além das Nuvens (1995, co-dirigido com Michelangelo Antonioni) e Truque de Luz (1996, sobre os irmãos Skladanowsky, pioneiros do cinema).

Hoje, 30 longas-metragens depois, se existe um cinema que melhor reflete a confusão dos últimos anos da Guerra Fria, este é o de Wim Wenders. Feito de incomunicabilidades e de busca de identidade, é um cine de tempos mortos, que antecede momentos transparentes, onde a narrativa fica por vezes suspensa, como se desprovida de peso, detendo-se sobre um gesto, um sinal, uma palavra, um silêncio, uma imagem. Um cinema espantosamente concreto e, no entanto, em deslocamento constante. Filmes de estrada, de solidão e de música.

Filmografia do diretor (longas-metragens):
Palermo Shooting, 2008
Estrela Solitária (Don’t Come Knocking), 2008
Medo e Obsessão (Land of Plenty), 2004
O Hotel de Um Milhão de Dólares (The Million Dolar Hotel), 2000
Buena Vista Social Club, 1999
O Fim da Violência (The End of Violence), 1997
O Céu de Lisboa (Lisbon Story), 1994
Tão Longe, Tão Perto (Far Away, So Close), 1992
Até o Fim do Mundo (Bis Ans Ender der Welt), 1991
Asas do Desejo (Der Himmel Über Berlin), 1987
Tokyo-Ga, 1985
Paris, Texas, 1984
Quarto 666, 1982
O Estado das Coisas (Der Stand der Dinge), 1980
Filme de Nick (Nick’s movie), 1980
O Amigo Americano (Der Americanische Freund), 1977
No Decurso do Tempo (Im Lauf der Zeit), 1976
Movimento em Falso (Falsche Bewegung), 1974
Alice nas Cidades (Alice in den Staedten), 1974
A Letra Escarlate (Der Scharlachrote Buschstabe), 1972
O Medo do Goleiro Diante do Pênalti (Die Angst des Tormanns Beins Elfmeter), 1971
O Verão na Cidade (Summer in the City), 1970