Filme de horror não-ficcional (Procedimento Operacional Padrão, 2008)
por Marcelo Oliveira da Silva
Independente do que o futuro reserve ao Iraque, a incursão dos Estados Unidos será sempre lembrada no país pelos abusos infligidos aos prisioneiros iraquianos na penitenciária de Abu Ghraib, na periferia de Bagdá. Através de entrevistas com aqueles guardas e alguns de seus superiores, o filme Standard Operating Procedures (em tradução aproximada, algo como “procedimentos operacionais padrões”) examina as fotos de iraquianos nus, com o rosto coberto por calcinhas e sutiãs, obrigados a compor situações embaraçosas com outros prisioneiros igualmente desmoralizados, e reconstitui o contexto daquela macabra luxúria militar. Mais do que falar sobre o caso, Errol Morris, autor do primeiro documentário a entrar na mostra competitiva em 58 anos do Festival do Cinema de Berlim, conversou com a imprensa sobre a própria natureza do filme documental.
Morris entrevistou na maioria dos casos ex-soldados que foram enviados ao Iraque em 2004, quando recém saíam da escola. Vemos apenas seus rostos nos olhando nos olhos. O espectador tem o mesmo ponto de observação de Morris. Esse recurso é possibilitado por um equipamento chamado Interrotron, que permite ao entrevistado olhar nos olhos do entrevistador e, ao mesmo tempo, direto para a câmara. Algumas situações foram reencenadas para ilustrar as entrevistas, que perfazem a maioria do filme, somadas a muitas fotos. Segundo a general Janis Karpinski, demovida do controle sobre Abu Ghraib por “não concordar com a superlotação do local com pais e filhos recrutados a esmo nas ruas de Bagdá, incapazes de fornecer qualquer informação de valor militar”, 30 mil iraquianos passaram pelo local.
Como o senhor define o filme?
Errol Morris – Eu diria que é um filme de horror não ficcional. É muito difícil dizer qual é a primeira reação das pessoas àquelas fotografias. Eu lembro de alguns soldados falando de pesadelos com aquelas situações, aqueles prisioneiros com as cabeças cobertas. Há algo de inumano naquilo, algo próprio dos sonhos ou dos pesadelos.
Como chegou à decisão de fazer este filme?
Morris – Sou um grande interessado em fotografia, ou na verdade revelada pelas imagens. Também me interesso profundamente pela falência da política externa do meu país. Quando apareceram as fotos sobre Abu Ghraib, percebi que chegávamos ao fundo do poço. Há uma tragédia social e política representada ali. Certamente mais trágica para os iraquianos, mas ambém para os americanos, e não falo só dos militares. Isso afetou profundamente a auto-imagem que temos do nosso país. Aqueles fatos se projetaram pelo mundo e creio que formam ma das histórias mais importantes do nosso tempo. As fotografias eram uma evidência fundamental dessa tragédia, e preservá-las da completa destruição promovida pelo exército americano era urgente.
Os soldados desculpam-se e compreendemos suas situações, mas eles não parecem assumir a responsabilidade por aqueles atos.
Morris – Não é um filme sobre confissões, remorsos ou culpas. Eu quis mostrar a história das fotos. Pegue a soldado Sabrina Harman, que decidiu começar a fotografar os abusos e, em suas cartas à família, fala em denunciar a situação. Ela tirou a foto do cadáver de um prisioneiro torturado até a morte. Mas ao mostrar também seu próprio sorriso e sua mão com o polegar para cima, ela foi implicada no assassinato. É certo que há muitas contradições nela. É uma das fotos mais complexas e intrigantes de todo o caso, e não creio que eu saiba explicar o gesto. Mas sem a foto de Sabrina, jamais teríamos tido conhecimento daquele assassinato. Sob outras circunstâncias, ela poderia ter ganho o prêmio Pulitzer. Ela tropeçou naquela situação. O mundo em torno dela, o nosso mundo, estava enlouquecendo. Ela não participou do crime, nem criou nada. Eram “Procedimentos Operacionais Padrões”. Ela também registrou prisioneiros nus, amontoados uns sobre os outros como numa pirâmide, e outros algemados em posições torturantes por várias horas. E foi punida por tirar fotos que embaraçaram o Exército dos EUA, não por qualquer indisciplina. Será que ela devia expressar remorso por aquilo? Os verdadeiros culpados daquela insanidade não foram punidos, nem ninguém acima do posto de sargento.
Alguns jornalistas reclamaram das computações gráficas e do uso de algumas reencenações. Isso compromete a aura documental do filme?
Morris – Bobagem. Essa idéia de que a verdade é garantida por uma apresentação altamente inspirada pela honestidade e despojada de artifícios, da câmara na mão que corre afobada atrás de imagens desfocadas, mal-enquadradas e escuras, é mera convenção. A verdade é uma busca. A verdade deve ser apresentada de uma maneira convencional, para que possamos reconhecê-la? Óbvio que não! A verdade é o processo de investigar o mundo, de questionar de várias maneiras o que de fato motivou isso e aquilo. Quando reencenei um assassinato numa cela, não contei com atores improvisando sobre o que achei que era o caso. Era uma maneira de traduzir em imagens uma investigação que incluía ouvir pessoas reais e fotografias tiradas por quem presenciou aquilo. Era uma tentativa de compreender as circunstâncias concretas daquelas versões. Acredito que, no coração da feitura de um documentário, deve estar a busca pela verdade, mas não acredito que essa busca deva ser dirigida de acordo com um certo estilo, uma certa conduta, uma certa norma para documentários. A única regra que aceito é a procura pela descoberta da verdade, com os elementos que estiverem disponíveis.
O senhor tentou entrevistar os militares condenados à prisão?
Morris – Sim, mas não me foi permitido. Não consegui sequer localizar as penitenciárias onde eles devem estar. Esse é o caos do sistema de guerra americano. Você não pode abarcar tudo. Mas deixe-me acrescentar uma coisa: não creio que os soldados que entrevistei tenham sido 100% inocentes. São seres humanos tentando conviver com um passo em falso. Mas será que eles são de fato os vilões? Os mentores daquela enorme prisão de civis? Claro que não. Minha proposição é contar a completa perda de decência da CIA e de nosso governo no comando militar a partir da versão dos soldados.
Entrevista publicada originalmente no caderno Cultura de Zero Hora em 16/2/2008. Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.