Filme Rifle, do mesmo diretor de Castanha, atualiza mito do gaúcho
Por Daniel Feix, publicado em Zero Hora em 02 de agosto de 2017
Depois de João Carlos Castanha, Dione Avila de Oliveira. Responsáveis pelo filme que demarcou o território a ser ocupado por uma das mais promissoras gerações do cinema gaúcho, o diretor Davi Pretto e a produtora Tokyo Filmes migraram dos cenários urbanos de Castanha (2014) para a vastidão opressora do pampa empobrecido em Rifle (2016), seu segundo longa-metragem, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas brasileiros após exibições em festivais como os de Berlim e Brasília.
Dione interpreta um personagem de mesmo nome na trama sobre um jovem errante que trabalha como peão em uma estância provavelmente da região de Dom Pedrito (sabe-se apenas que ele é órfão e que vem das bandas de Vacaíqua, distrito do município localizado na fronteira com o Uruguai). Quando um empresário o aborda perguntando se as terras dessa estância estão à venda, e ele se dá conta de que a transferência da propriedade pode ter como consequência a sua dispensa do lugar que o acolhera, reage de maneira violenta.
O rifle referido no título é tão personagem da trama quanto a paisagem – Dione parece ter a personalidade moldada pelo ambiente no qual está inserido e só consegue estabelecer uma comunicação efetiva, por assim dizer, com a arma que empunha. Trata-se de uma releitura contemporânea do mito do gaucho forjado pelo amálgama das culturas ibérica e indígena mas, acima de tudo, pela luta pela subsistência em um lugar que não é o seu – característica de quem não se estabelece em um território fixo.
A “versão rural” da trama de especulação imobiliária, tema central do badalado Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, é na verdade apenas o ponto de partida de Rifle. Pretto e Richard Tavares, autores do roteiro, estão mais interessados no estudo das motivações de um personagem introspectivo que age aparentemente por impulso e de maneira inconsequente. A dupla se sai bem no desafio graças à boa interpretação do ator estreante (cooptado na região das filmagens) e aos planos longos e silenciosos, que dão o tempo suficiente para o espectador entender a lógica possível de seus atos.
Dione é uma espécie de Vingador Silencioso (como o do faroeste de Sergio Corbucci, de 1968), meio Travis Bickle (o icônico protagonista de Táxi Driver, de Martin Scorsese, 1976), cuja história espelha a própria natureza da violência. Faz sentido, assim sendo, comparar Rifle a ensaios contemporâneos sobre o tema, caso de Marcas da Violência (de David Cronenberg, 2005), que carrega esse pressuposto no título original: A History of Violence. Não são à toa as referências a abigeato contidas na trama – e as respectivas imagens de carcaças de animais abatidos, cuja função dramática é semelhante à das sequências oníricas de Castanha, ou seja, conduzir as sensações do público para além do que a história apresenta objetivamente.
A fotografia de Glauco Firpo, opaca, desidratada, ajuda a demarcar o tipo de pampa no qual Dione se move. Os ambientes internos escancaram ainda mais a simplicidade da vida naquele território – méritos, em grande parte, da direção de arte, também assinada por Richard Tavares. Mas o que de fato potencializa o impacto das imagens de Rifle, por mais paradoxal que possa parecer, é o desenho de som de Tiago Bello, que incorpora o estrondo dos tiros e os ruídos discretos da natureza de modo orgânico, na medida para conduzir a fruição. Preste atenção, por exemplo, na primeira sequência do filme, quando Dione raspa com uma faca o tronco de uma árvore e ouve-se uma mistura dos barulhos de pássaros, vento e um riacho, tudo em um volume crescente, a revelar toda a perturbação do personagem.
Rifle foi o primeiro projeto de longa-metragem de Davi Pretto e da Tokyo. Foi atropelado por Castanha, que por contingências de produção e financiamento acabou finalizado antes. Fez todo o sentido que o marco de um novo cinema gaúcho tivesse sido um filme urbano. Mas Rifle mantém a qualidade, além de atualizar um tipo tão caro ao imaginário local. Atualizar e, fundamentalmente, desmistificar – ainda mais do que o faz Artigas (de César Charlone, 2011), porque traz esse tipo para mais perto do espectador.