Filmes que conquistaram o 50º Festival de Cinema de Gramado conferem face humana a tristes realidades brasileiras, por Carlos Helí de Almeida
“Tem coisas no Brasil que a gente não sabe se é para rir ou chorar”, reagiu Gabriel Martins, diretor de Marte Um, vencedor do prêmio especial do júri e do voto popular da 50ª edição do Festival de Gramado, durante a coletiva de imprensa de seu filme. Delicado e comovente drama familiar que expõe em suas entrelinhas as fraturas da sociedade brasileira contemporânea, o filme do realizador mineiro é um dos exemplos mais bem acabados do tipo de cinema que conquistou corações, mentes e (muitos) prêmios na histórica edição de aniversário da mostra gaúcha, realizada em agosto: aquele que expõe, por meio da ficção, fragmentos de realidades absurdas, muitas vezes trágicas, mas que, por serem quase normalizadas no dia a dia, até inspiraram o riso nervoso, como bem lembrou Martins.
O recorte dos longas-metragens da competição foi particularmente rico na forma de abordagem de temas urgentes. É o caso de “A mãe”, estreia do documentarista Cristiano Burlan na ficção, uma crônica do estado mental de uma mãe em busca do filho desaparecido. A trama, que conquistou os troféus de direção e de atriz (Marcélia Cartaxo), toma a protagonista como símbolo das milhares de mulheres das periferias brasileiras que perderam seus filhos para a violência policial. O mesmo pode-se dizer de Noites alienígenas, de Sérgio Carvalho vencedor dos Kikitos de melhor filme nacional da crítica e do júri oficial. A surpresa que veio do Acre é um drama que recorre à simbologia da ficção científica para falar de um fenômeno relativamente recente no país: o impacto da chegada de facções criminosas do Sudeste nas comunidades indígenas e periféricas da região amazônica.
Em Gramado, o apelo do cinema de viés político-social cruzou fronteiras e encontrou seu lugar entre os títulos da competição internacional. Vencedor do júri popular e do prêmio especial do júri, dedicado à direção de arte, La pampa, de Fernández Moris, parte do popular mote da vingança pessoal para denunciar a tragédia social que é o tráfico de pessoas (notadamente mulheres) na região amazônica do Peru, dominada pela mineração ilegal. A produção mexicana El camino de Sol, dirigido por Claudia Sainte-Luce, ganhadora do Kikito de melhor atriz (Anajosé Aldrete), por sua vez, também parte de um caso específico – uma mãe separada do marido que faz o inimaginável para resgatar o filho raptado – para jogar luz sobre a indústria do sequestro, um dos pesadelos dos grandes centros urbanos do México.
Os longas que conquistaram o júri, a crítica e o público de Gramado foram aqueles com conseguiram conferir uma face mais humana a números, estatísticas e recortes do noticiário. Cada um ao seu estilo, e com sua estética particular. A mãe, por exemplo, é uma ficção contaminada pelas origens documentais de seu autor, conhecido por transpor para as telas suas heranças da juventude, marcada pela pobreza e a violência, em filmes como Mataram meu irmão (2013) e Elegia de um crime (2018). Em determinado momento do drama da mãe solo interpretada por Marcélia Cartaxo, a narrativa abre-se para uma pequena contribuição de Débora Maria da Silva, fundadora do movimento Mães de Maio. E fecha com a imagem de várias representantes do grupo empunhando um cartaz de protesto, deixando claro suas inspirações no real.
A fusão de gêneros é um recurso que se repete (discretamente) em Noites alienígenas: a tensão crescente do drama ganha pequenos toques de fantástico, sugeridos pela natureza esotérica do personagem vivido por Chico Dias, um traficante de drogas com cabeça de hippie. A trama, inspirada no livro homônimo escrito pelo próprio diretor, entrelaça as trajetórias de três amigos de infância de uma periferia pobre da capital Rio Branco, dentro de um complexo contexto social que entrelaça questões envolvendo o crime organizado, o meio ambiente, o poder da religião e as tradições dos povos originários. O desfecho, como esperado, não é necessariamente feliz, mas o flerte do filme de Sérgio Carvalho com a fantasia abre portas para a possibilidade de redenção.
Talvez o filme menos “ativista”, no sentido pejorativo da palavra, da bela safra do Festival de Gramado seja mesmo Marte Um. As implicações político-sociais que o inspiraram estão lá, no fundo da paisagem, sugeridos pelo recorte temporal – as semanas posteriores à eleição de Bolsonaro, em 2018 –, e alguns flashes do noticiário televisivo. Mas as situações vividas por uma família de classe média baixa do interior de Minas Gerais, cujas aspirações começam a ser esmagadas pela mentalidade conservadora dos novos tempos que se anunciam, falam por si. Temas caros à agenda política atual, como racismo, feminismo, identidade sexual e luta de classes, permeiam as ações e relações afetivas desse núcleo familiar de forma quase natural, sem discursos panfletários. Chega ser até compreensível, dentro do contexto que se desenha, que o filho mais novo sonhe em ser astrofísico e mudar-se para Marte.
Texto de Carlos Heli de Almeida.
Crédito da imagem da publicação: Diego Vara / Pressphoto.