Helena (quase) na intimidade (Dona Elena, 2004)
por Daniel Feix
Documentário é linguagem. Qualquer realizador que desconhecer esta premissa estará fazendo, por princípio, um filme contestável. De que valeria um documentário com a forma de uma reportagem do Globo Repórter? O que faria em uma sala de cinema, no circuito alternativo (é ali que passam os documentários), um filme que não se propusesse a ser autoral, mas tão-somente a registrar um fato ou apresentar um personagem? Um documentário, um filme-documentário, jamais vale apenas pelo seu tema, pelo seu objeto de documentação. Seu valor está sempre na interpretação do autor sobre esse tema-objeto, na forma, na maneira com que o documentarista o apresenta.
Eduardo Coutinho criou um jeito único de fazer filmes. João Moreira Salles inventa e reinventa suas narrativas a cada produção. Jorge Furtado e Fernando Birri fizeram as duas maiores referências do documentário dos lados de cá e de lá do Rio da Prata testando os limites da linguagem, indo até onde a realidade se confunde com a ficção (Ilha das Flores, do diretor gaúcho) ou deixando a realidade conduzir a investigação (Tire Dié, do argentino). As referências históricas comprovam: os documentários só se transformam em experiências estéticas quando encontram uma forma não apenas de fazer uso da linguagem, mas de manejá-la, de interpretá-la ou mesmo testá-la em seus limites.
Dona Helena acerta quando leva isso em conta. O problema é que nem sempre a produção gaúcha dirigida por Dainara Toffoli sobre a violonista genial e figuraça mato-grossense Helena Meirelles (1924 – 2005) é assim. Descontando depoimentos de arquivo, a espontaneidade da protagonista é vista de fato na metade final do filme, quando a câmera registra Helena falando ao telefone antes da gravação da entrevista com a diretora e a equipe de produção, quando essa equipe a leva até o local em que ela se criou – e que hoje está debaixo d’água devido à construção de uma barragem –, e sobretudo nas seqüências que a mostram em casa, com o marido e o filho e acompanhante de palco problemático antes de um show. Nesse último momento, inclusive, Dona Helena chega a lembrar o belo Nelson Freire, de João Moreira Salles, que entre outras coisas usa os bastidores das apresentações do pianista para explorar aspectos menos óbvios do personagem. Entretanto, quando não abre espaço para o acaso nas filmagens, quando não foge ao formato tradicional das entrevistas, dos encontros entre documentarista e documentado, a produção poucas vezes consegue fazer a violonista se soltar. Helena é melhor quando aparece falando à platéia, no palco, em gravações antigas reaproveitadas na edição do filme.
Trata-se de uma grande personagem. Violonista desde criança, fugiu da casa do pai para poder se dedicar ao instrumento pelo qual era apaixonada. No interior do Mato Grosso, encantava os boiadeiros com sua música caipira, de sotaque sertanejo e influências do folclore indígena, mas, para ganhar a vida, acabou se prostituindo. Teve 11 filhos e relações tumultuadas com todos os homens que cruzaram seu caminho – pais, filhos, maridos, amantes. Desconhecida até os 69 anos, acabou reverenciada de uma hora para a outra, quando um produtor a descobriu e enviou uma fita cassete aos editores da Guitar Player. Antes de lançar seu primeiro disco, foi considerada uma das 100 maiores guitarristas de todos os tempos. “Quando morrer, vou saber que estou entrando no céu se ouvir Jimi Hendrix ou Helena Meirelles”, diz, no filme, o editor da revista americana (a violonista morreu em 2005, aos 81 anos, quase à época do lançamento de Dona Helena nos cinemas e na tevê a cabo).
Entrevistar o editor, e também o primeiro produtor, assim como maridos, filhos e até uma cafetina dos velhos tempos, além de promover o reencontro de Helena com suas origens, numa cena no mínimo tocante, tornam o filme bastante completo. Embora sequer atinja a metragem de um longa (são 54 minutos, apenas), pode-se dizer que Dona Helena cobre toda a rica e turbulenta trajetória da personagem. O que é indiscutivelmente um acerto – afinal, trata-se de uma grande porém não muito conhecida personagem da música e da diversificada cultura popular brasileira, cuja história vale por inteiro, em todos os seus detalhes. Também há de se destacar o ritmo com que a história é contada: os depoimentos rápidos dão agilidade à narrativa e permitem que a personagem seja apresentada em toda a sua riqueza, até os pontos culminantes do filme, indiscutivelmente os mais interessantes, ao final.
Tudo isso são escolhas que indicam autoria. Ainda assim, Dona Helena se ressente da falta de algumas opções mais arriscadas de seus autores – além da diretora é preciso mencionar também Monica Schmiedt, que é co-autora do argumento e produtora do filme. A base da narrativa, por assim dizer, está nas entrevistas de Helena. É a partir delas que a história se desdobra – depoimentos de outras pessoas, imagens de arquivo e trechos de shows surgem como elementos ilustrativos, complementares. Não são essas entrevistas, no entanto, que promovem os melhores momentos do filme. A própria seqüência de uma menina que corre sobre a terra arrastando um violão: embora simbólica e poética, é de se questionar se se trata de uma imagem necessária, pertinente – com um personagem tão fascinante em mãos, Dainara Toffoli e equipe precisavam mesmo apelar para imagens sem relação direta com sua investigação, imagens frias, construídas sem o envolvimento da protagonista da história? O problema de Dona Helena, a despeito de suas qualidades, é que as entrevistas com a personagem documentada e as imagens documentais produzidas exclusivamente para o filme, por si só, não são capazes de fazer o filme.
À parte esses questionamentos, é preciso ressaltar que se está diante de um dos títulos mais significativos produzidos no Rio Grande do Sul recentemente. Junto a diversos outros cujo maior destaque é o excelente O Cárcere e a Rua (de Liliana Sulzbach, 2005), está colaborando para pôr fim a uma lacuna histórica da produção local. Se nos anos 1980 o Estado viu nascer um clássico como Ilha das Flores e, em décadas anteriores, foi um centro de realização de cinejornais, os 1990 e 2000 não foram profícuos no lançamento de documentários. Graças a uma leva integrada por filmes de realizadoras como as citadas Liliana Sulzbach, Monica Schmiedt e a própria Dainara Toffoli, e ainda produções feitas para veiculação direta na televisão, sobretudo RBS TV, Dona Helena está recolocando Porto Alegre no mapa da realização de cinema não-ficional.
A cidade ainda é uma produtora irregular de documentários, mas, já se pode dizer, é novamente uma cidade produtora de documentários.
Texto publicado originalmente na revista de cultura Aplauso, edição nº 77 (2006). Texto de crítico integrante da ACCIRS já publicado em outro veículo da imprensa e autorizado para publicação no site da associação.
Dona Helena
Direção: Dainara Toffoli
Documentário
País: Brasil (RS)
Ano de lançamento: 2004
Disponível em DVD
Duração: 55 minutos