Lula, o filho do Brasil – um melodrama emocionante ou uma hagiografia despolitizada?
Por Maria do Rosário Caetano
Os primeiros quinze minutos de “Lula, o Filho do Brasil”, recriação cinematográfica do livro homônimo de Denise Paraná, evocam clássicos cinemanovistas da linhagem de “Vidas Secas” (Nelson Pereira dos Santos, 1963). Lá estão o chão seco, as plantas raras, os bichos poucos, o pai bruto, a mãe de prole numerosa. O pai, de nome Aristides (Milhem Cortaz), que aparenta ter mais amor pelo cachorro doméstico do que pelos filhos, abandona a casa, a esposa e os meninos para tentar a sorte numa grande metrópole do sudeste. Escondida atrás de uma árvore seca e retorcida, o espera uma adolescente (Mocinha, interpretada pela atriz Rayana Carvalho), já grávida. Mais tarde saberemos que a mocinha é prima de Dona Lindu, a mãe dos filhos de Aristides (interpretada com segurança por Glória Pires).
A história ganha um novo espaço: a Baixada Santista. O homem que migrou do agreste pernambucano e estabeleceu-se num barraco em Itapema (hoje o bairro de Vicente de Carvalho, no Guarujá) vive maritalmente com Mocinha e o filho recém-nascido. E também com Jaime (Maicon Gouveia), filho adolescente de seu casamento oficial com Dona Lindu. Aristides tornou-se estivador. Trabalha como um bruto carregando sacas de café no Porto de Santos. Analfabeto, pede que o filho escreva carta à mãe, Lindu, pedindo notícias dos familiares. E mandando instruções de como ela deve proceder lá no agreste pernambucano. Ou seja, não deve vender os poucos bichos, nem o pedacinho de terra que os abriga.
O filho, que vive com o pai e a madrasta, torce pela vinda da mãe e dos irmãos para a Baixada Santista. Num dos bons momentos do filme, a montagem paralela mostra o pai ditando a carta, que exige zelo pelo mínimo patrimônio da Família Silva, e a leitura da carta real, escrita por Jaime. O adolescente, aproveitando-se do analfabetismo do pai, pede que a mãe venda a cabrita e os raros pertences e que migre para Itapema, vindo ao encontro dos seus. A carta é lida para Dona Lindu, também analfabeta, pelo dono da venda da pequena Caetés pernambucana, Seu Tosinho (Jones Melo). Crente que, passados sete anos (idade do menino Luiz Inácio, que nascera meses depois da partida do pai), Aristides estava pronto para receber os familiares, Dona Lindu vende tudo e pega o pau-de-arara. O diretor Fábio Barreto constrói mais uma sequência que evoca os filmes cinemanovistas. Aqueles que registraram, com paixão e empenho, as grandes sagas migratórias de nordestinos rumo ao Sul.
Até a migração no pau-de-arara, acreditamos que Fábio Barreto — depois de três fracassos de crítica e público (“Bela Donna”, “Jacobina” e “Caravaggio”, obras que sequenciaram sua indicação ao Oscar, com “O Quatrilho”) – havia reencontrado o bom caminho cinematográfico. Afinal, filmara o agreste sem estetizações vazias (apoiado na fotografia poderosa de Gustavo Hadba, tributária da luz nua de Luiz Carlos Barreto em “Vidas Secas”, e de Mauro Pinheiro, em “Cinema, Aspirina e Urubus”) e acreditara na potência da imagem. A ponto de abrir mão de diálogos. As falas emitidas até então eram rarefeitas, mínimas. Ainda por cima, mesmo confessando ter feito um filme de gênero (“um melodrama épico”) fora econômico no uso de trilha sonora.
Impressão enganosa. Depois que a primeira família de Seu Aristides se encontra com a segunda (a de Dona Mocinha), o filme desanda e transforma-se em um melodrama simplista e despolitizado. Um melodrama dito “épico”, que – porém – não consegue dar conta das duas “teses” que sustentam seu roteiro (assinado pelo cineasta, em parceria com Fernando Bonassi, Denise Paraná e Marcelo Santiago).
Duas Teses
Tese um: Luiz Inácio da Silva, o filho do Brasil, é fruto da dedicação de sua mãe, dona Lindu, lavradora que envidou esforços sobrehumanos para evitar que seus oito filhos caíssem na marginalidade. Por esforço dela, nenhuma das meninas seria prostituta e nenhum dos meninos seria ladrão.
Tese dois: Luiz Inácio da Silva seria, ao longo de sua vida profissional e sindical, um conciliador. Um homem do diálogo. Teria conflitos de consciência ao ver os companheiros grevistas (trabalhadores de uma pequena fábrica, um de seus empregos de juventude) “justiçarem” o patrão, depois de assistir à morte de um grevista.
Para dar vida à saga do “filho do Brasil”, de sua mãe abnegada e de seus irmãos, todos oriundos da pobreza do agreste pernambucano, e da “peonada” sindical, Fábio Barreto escalou bons atores. Fugiu dos galãs televisivos que arruinaram seus filmes anteriores (com suas belas estampas) e buscou, especialmente no teatro paulista, nomes respeitáveis como Celso Frateschi, Marat Descartes e Marcos Cesana. Eles se somaram ao estreante Rui Ricardo Diaz, que dá conta de sua difícil missão (interpretar o sindicalista que comandou as Greves do ABC). Para o papel de Dona Lindu, escalou a talentosa Glória Pires (atriz desde os seis anos de idade, que nunca se notabilizou pela beleza física).
O bom elenco, incluindo crianças e adolescentes que interpretam os filhos de Dona Lindu, não impediu que Fábio Barreto se perdesse. Os problemas do filme se avolumam por falta de ideias sólidas. O diretor não conseguiu justificar cinematograficamente suas duas “teses”, até porque abandonou os irmãos de Luiz Inácio (meros figurantes na narrativa) e transformou o sindicalista num semi-deus. O diretor (e depois presidente) do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, sucessor do menino que apanhava do pai bruto e alcoólatra, não comete deslizes de nenhum tipo.
O Lula que acompanhamos do nascimento aos 35 anos (1945-1980) é um ser tão perfeito, que uma aura chega a emoldurar sua figura até em momentos prosaicos. Quando ele vai ao cinema (para ver o mazaroppiano “O Noivo da Girafa”), um enquadramento grandiloquente o sacraliza.
Fiel ao ideário nacional-popular, o filme apaga qualquer referência à indústria cultural norte-americana (tão forte no Brasil, após a Segunda Guerra). No caminhão pau-de-arara que traz Lula e família para o Sudeste, há uma bandeira do Brasil pintada na modesta carroceria. Lula dança nos bailinhos da Grande São Paulo ao som de Tim Maia (“Você”), Paulo Sérgio (“Última Canção”, na voz de Nana Caymmi) e assemelhados. Na TV, assiste a “Irmãos Coragem” (numa liberdade temporal, pois uma edição extraordinária do Jornal Nacional interrompe o namoro de Glória & Tarcísio para anunciar a edição do AI-5, ocorrida em dezembro de 1968. A telenovela só iria ao ar em 1970). Se hoje Lula tem “Cinema Paradiso” e “2 Filhos de Francisco” como seus filmes prediletos, em muitas ocasiões confessou-se fã de filmes de ação made in USA (na linha do que a esquerda nacionalista chamava nos anos 70 de “enlatados”).
Diálogos sofríveis
Depois da bem-resolvida saga inicial da família de migrantes nordestina rumo à Baixada Santista, “Lula, o Filho do Brasil” abandona os silêncios e torna-se palavroso. Troca a potência da imagem por diálogos sofríveis. Embora o ator-mirim Felipe Falanga seja carismático e talentoso, fica difícil acreditar nos sofrimentos que lhe são infligidos, aleatoriamente, pelo pai Aristides. Somos forçados a acreditar que o moleque que sonha com jujubas e sorvetes, que se tornou engraxate e vendedor de frutas nas ruas de Itapema e Santos, é um escravo do pai tirano. Um pai sempre embriagado, que não deixa nem o menininho Lula jogar futebol com os coleguinhas.
No livro de Denise Paraná (tese de seu doutoramento na USP), o Lula real evoca suas lembranças de infância, lembra a vontade de tomar sorvete e mastigar jujubas. Lembra que o pai não valorizava, como Dona Lindu, a escola que instruiria os meninos. Com os oito filhos de Dona Lindu, somados aos que nasciam na segunda família (a de Mocinha), ele transformava o trabalho (dele e dos filhos pequenos) em obsessão. Tinha que arrumar comida para quase 20 pessoas. Dona Lindu catava os grãos de café que sobravam no porto, os meninos faziam bicos (catavam lenha, vendiam doces, engraxavam sapatos). A cachaça “aliviava” a tensão de ter que alimentar tantas bocas.
No filme, Aristides não tem nuances. É um ogro, um vilão que inferniza a vida dos filhos. Já no livro, quando Dona Lindu resolve abandonar o marido e deixar Itapema, ela o faz em razão de acontecimento dramático, paroxístico. Os meninos costumavam buscar lenha numa canoa do pai. Um dia a canoa desaparece, por descuido dos garotos. Furioso com a perda daquele “instrumento de trabalho”, o pai espancou brutalmente os filhos (em especial Lula) com uma mangueira. Na tela, o episódio dilui-se de tal forma que o espectador não entende bem porque aquela mãe coragem está partindo.
Como tem muita história para contar (uma enchente que levou colchões e panelas, deixando o barraco da Família Silva em petição de miséria, o aprendizado do ofício de torneiro mecânico no Senai, os dois casamentos, a prisão de Ziza, o irmão comunista, apelidado Frei Chico, a militância sindical, a prisão política e a ida ao enterro de Dona Lindu, em maio de 1980), Fábio e sua montadora (Letícia Giffoni) se apavoram e transformam o filme numa sucessão de episódios fragmentados. E sem liga entre eles.
Na tentativa de dar organicidade ao material, o “melodrama” de Fábio Barreto exacerba-se com seus dois componentes: o drama propriamente dito e a melodia. A música de dois craques (Antônio Pinto, de “Cidade de Deus” e Jacques Morelembaum) ganha tamanho relevo que nos soterra. Nos faz ansiar por momentos de silêncio.
Oito filhos de Lindu — O modelo assumido da Família Barreto ao levar o livro de Denise Paraná às telas foi o blockbuster brasileiro, “2 Filmes de Francisco” (Breno Silveir,2005). Luiz Carlos Barreto, o produtor, pensou até em chamar o filme de “Lula, O Filho de Dona Lindu”. Só que Fábio Barreto não seguiu as principais lições de Breno. Ou seja: não apostou em base documental (preferiu o melodrama folhetinesco), não evitou excessos musicais, nem escorou o filme em protagonista de essência (alma) brasileira. O Sr. Francisco é um sonhador cheio de macetes, que tem muito do João Grilo : vende um sítio para comprar sanfona para os filhos, alimenta-os com gema de ovo, “elixir” do bem cantar, compra centenas de fichas de telefone e liga para a emissora de rádio, cabalando a execução de um futuro hit dos filhos.
O protagonista de “Lula, o Filho do Brasil” é um homem perfeito, sem máculas. Tão perfeito que não poderia ter uma filha (Lurian), fruto de breve relacionamento com Miriam Cordeiro. Tão perfeito, que se politizou de forma mágica. Saiu de um sindicalismo pelego (representado no filme pelo personagem de nome fictício, Cláudio Feitosa) para o sindicalismo combativo das grandes Greves do ABC Paulista, sem que saibamos que caminhos trilhou.
Paula Barreto, irmã de Fábio e produtora do filme, justificou a ausência do relacionamento de Lula com Miriam Cordeiro (na época, ele era viúvo) e o nascimento de Lurian por “razões ligadas a direitos de imagens”. Miriam cobraria reparações financeiras por via judicial. Tal justificativa não procede, na medida em que o cinema pode recorrer a personagens fictícios. Fábio lançou mão deste recurso ao transformar o sindicalista que iniciou Lula nas lides do Sindicato de São Bernardo do Campo, Paulo Vidal, em personagem fictício (o Feitosa, interpretado por Marcos Cesana).
Humor zero
Se tivesse tratado Lula como um ser dotado de qualidades e defeitos (como todos os seres humanos) e se tivesse preservado o humor da dupla “Taturana & Lambari” (apelidos de juventude de Lula e do amigo-e-depois-cunhado), “O Filho do Brasil” teria mais a ver com “2 Filhos de Francisco”.
O livro-tese de doutorado de Denise Paraná, embora não seja uma narrativa biográfica à moda de Fernando Morais (“Chatô”, “Olga”) e Ruy Castro (“Anjo Pornográfico”, “Carmen Miranda”), dá-se o direito de registrar muitos momentos de humor. Os mais divertidos são, mesmo, as histórias narradas por Lambari (no filme, o ator Clayton Mariano), o maior amigo do jovem Lula. Os dois dividiam maços de cigarro barato e um único paletó. Se viravam nos bailinhos das periferias em busca de namoradas, enfrentavam com criatividade a aguda falta de grana. Lula viria a se casar com Lurdes, irmã de Lambari (perderia a mulher e o filho, num dos dias mais difíceis de sua vida).
O filme de Fábio Barreto não tem humor. É solene, elegíaco, hagiográfico. Lambari torna-se personagem secundaríssimo, assim como ocorrera com os irmãos e irmãs de Lula. Até Frei Chico, o irmão comunista de Lula, e um dos vetores de sua politização, assume caráter por demais secundário.
Gasta-se mais tempo nas histórias conjugais do Filho do Brasil que em sua politização. Em benefício do filme, vale um registro: no processo de aproximação de Marisa Letícia (Juliana Baroni), o filme se permite uma brevíssima passagem bem-humorada. Lula e outro pretendente a namorado da moça de São Bernardo, jovem viúva de um taxista assassinado, se “enfrentam” no portão da casa dela. Lula, com certa picardia, leva a melhor. Mas logo o filme recobra o tom solene e pomposo.
Outra sequência de “Lula, o Filho do Brasil” merece registro. As greves do ABC começam a ganhar forma. Uma assembléia fora marcada para a Vila Euclides. Ninguém esperava multidões. Nem sistema de som adequado havia. Só que 80 mil metalúrgicos marcaram presença. O jeito foi Lula discursar para a “companheirada” e pedir que repetissem, em ondas, as palavras ditas no palanque improvisado. A sequência foi construída com apenas 600 figurantes, multiplicados com recursos digitais e enriquecidos com imagens reais de documentários da época. Por esta sequência, pelo silencioso início, pelo bom trabalho dos atores e pela competente fotografia de Gustavo Hadba, vale assistir a “Lula, o Filho do Brasil”.