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Publicado por em out 5, 2020 em Artigos |

Martín Desalvo e o Jaguaretê

Por Caroline Zatt da Silva, integrante do Júri da crítica Accirs/Abraccine do 48º Festival de Cinema de Gramado

A simbologia de um animal como protagonista em El silencio del cazador.

Assim como um caçador em meio à selva põe-se à espreita e segue rastros da sua presa, do mesmo modo o grande protagonista do longa argentino El Silencio del cazador é apresentado ao espectador pelo diretor e roteirista Martín Desalvo: por vestígios (de inspiração derridiana?). Nem mesmo seu nome é dado corretamente pelos diálogos do filme, poucas vezes, o chamam erroneamente de tigre.

Posto que um animal feroz estaria atacando rebanhos da região, dá-se a entender que um confronto antigo retorna ao presente: o guarda florestal que quer proteger a fauna do parque e o fazendeiro-herdeiro que anseia defender seus interesses econômicos. No passado, a briga entre eles foi por uma mulher: a médica rural Sara, que foi namorada de Polaco, o descendente dos colonizadores brancos, e hoje é casada com Guzmán, filho de um migrante paraguaio trabalhador. Percebe-se logo que a questão não está resolvida, que rancor, raiva e desejo povoam este triângulo amoroso.

Ressentimentos estão à flor da pele, assim como o medo de entrar em uma mata fechada habitada pelo maior predador das Américas. Seja pela interpretação ou pelos enquadramentos e movimentos de câmera, a tensão entre os três personagens e tudo o que os rodeia e os trouxe até aqui está sempre estabelecida, mas faltam subsídios ao espectador, os vestígios são dosados em pequenos indícios. Somente as emoções extravasam, indicando que há mais ali do que é mostrado. E as perspectivas não são boas. O contexto é armamentista, fazendeiros em suas grandes caminhonetes se acham os donos da terra e de tudo que há nela.

Com grande quantidade de territórios naturais protegidos, o cenário é uma cidade de interior da província de Misiones, no nordeste argentino, que faz fronteira com Paraguai, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Sara atende em aldeias indígenas, sua família preferiria que ela seguisse com o herdeiro de um patrimônio local e não quisesse ter filhos com o homem da lei, funcionário do governo, que passa muitos dias exilado no parque florestal, sem sinal de celular.

A diversão ocorre em um bailão local, com churrasco/asado e música festiva animada por acordeões. A pequena comunidade parece estar afastada de tudo, há um quê de decadência econômica no ar, mas o passado parece seguir ditando as ordens, o capital conserva sua autoridade, mais por tradição do que por poder financeiro. Aos poucos, se percebe que a natureza e suas divindades são as únicas que não podem ser controladas por esse peso do passado. E é naquele território de mata que as questões serão resolvidas.

O poder da figura mítica do Jaguaretê (do tupi-guarani ya’ara-ete, que significa “fera verdadeira”, expressão usada pelos guaranis para diferenciar a poderosa onça de outros felinos e canídeos) chega a ser irônica na tela em um momento em que as onças-pintadas do Pantanal não conseguem contornar os incêndios, e as imagens dos seus corpos robustos inertes ganham o mundo.

Ao mesmo tempo em que El Silencio del cazador é exibido no 48º Festival de Cinema de Gramado, Xadalu e o Jaguaretê, de Tiago Bertolini de Castro, concorre no festival Amazônia Doc. Este último, do gênero documentário, sai do evento com importantes prêmios: Melhor Filme Longa-metragem pelo Júri Popular e Menção Honrosa de Longa-metragem pelo Júri Oficial. Já o argentino, na mostra de longas estrangeiros, é reconhecido somente com o Kikito de Melhor Fotografia.

Talvez o formato comercial adotado por Martín Desalvo para contar esta história, trabalhando com atores famosos (Alberto Ammann, Pablo Echarri, Mora Recalde), acabe por não dar a evidência que a simbologia – que a obra carrega – mereça no campo narrativo. A opção por um final inesperado pode ter, também, prejudicado o teor da mensagem que o filme teria condições de problematizar, mas não aprofunda.

Existem questões formadoras intrincadas naquela pequena comunidade, sentidos identitários riquíssimos a se desvelar, mas que ficam escondidos em olhares de revesgueio. São pequenos animais, presas indefesas, com medo de correr em campo aberto e muito menos de encarar seus predadores em potencial. O ambiente de caça está sempre presente naquele fim de mundo. Desalvo opta pelos pequenos gestos, pois, na sua concepção de diretor, o grande público tende a rechaçar essas questões “problemáticas” e “sociais” se forem muito explícitas. Então, na sua escolha, elas não se mostram no aspecto discursivo, ficam os vestígios e as impressões que se somam deles.

Por fim, o fascínio por aquele robusto animal perpassa a narrativa, a devoção a ele quase como uma divindade espiritual. E é no estudo de sua simbologia e do papel mitológico que o Jaguaretê cumpre no imaginário dos povos originários da América que se compreende melhor as camadas de significado dessa história ficcional tão provocante.

Se a “fera verdadeira” é uma entidade a ser respeitada e temida, de acordo com os indígenas, que não ataca humanos se não for ameaçada, porque o branco colonizador insiste em colocar um alvo na sua cabeça de pelagem camuflada? Quem é este Polaco, arrogante, irresponsável, que se alia ao perigo e se torna sedutor?

Caçador oportunista, animal territorial, com tremenda força, o Jaguaretê é astuto, ele não é um perseguidor, observa a presa e arma uma emboscada. Foi inspiração para guerreiros de diferentes civilizações, desde o México até a América do Sul (astecas, maias e guaranis). Algumas usavam suas peles, garras e dentes como amuletos.

A imagem da onça-pintada permanece com o significado de empoderamento até hoje nas tradições dos povos latino-americanos. É um símbolo associado à recuperação da sabedoria que vem do passado. Em algumas partes da Argentina, é considerada um animal-sagrado. Na Província de Misiones, onde se passa o filme, muitos não se atrevem a mencionar o Jaguaretê, porque acreditam que ao fazer isso invocam a sua presença.

Pensadores como Lévi-Strauss e Sérgio Buarque de Hollanda, ao observarem certas tribos brasileiras, evidenciaram a presença da onça na mitologia tupi-guarani, em atributos de força, coragem e capacidade de reprodução. Carnívora e grande caçadora, a onça não tem o hábito de ficar por longo tempo sem comer, grande apetite que se equipara à fome por sexo, por isso nos mitos há também forte caracterização sexual.

Para o xamanismo, a onça ajuda energeticamente os xamãs nas curas, na medicina da coragem, da liberação de instintos, da sensualidade e do poder. Simboliza a conquista e proteção do espaço. Pode ser evocada para marcar território (conquistar e proteger o espaço) e eliminar medos, controlar impulsos e resolver traumas e bloqueios sexuais.

Não por acaso, o filme de Desalvo é tão visceral e movido por desejos carnais. Nas emblemáticas cenas de sexo, ele é posto como uma necessidade física, e não como uma expressão de afeto. Quando o ato sexual não será para saciar um desejo mútuo, de entrega carnal e física, e pode significar perdão ou dominação, ele é interrompido ou não é filmado.

Da mesma forma que a caça é sinônimo de sobrevivência para o Jaguaretê, perpetuação de sua espécie; a morte, no filme, também pode ser compreendida com a liberdade e um novo futuro para as personagens femininas. Seleção natural.