O começo de tudo
Por Roberto Cotta*
O medo esconde a selvageria espalhada em nossas veias. Em certo momento, o tigre e a moça se deparam com um muro alto, bem mais vasto que o mundo onde habitam. Surge, então, o impasse: pular ou continuar sob proteção da mesma redoma? Entre metáforas e reflexões, Só sei que foi assim (Giovanna Muzel, 2019) mostra a passagem à vida adulta como um doloroso exercício de desapego. Para uma juventude cada vez mais acostumada com os salamaleques urbanos, tem sido uma batalha sair do casulo e enfrentar o tédio da selva cotidiana. O tempo passa, o tigre some na floresta e a moça se despede do amigo. Vida que segue, indomável.
Eleita pela Associação de Críticos do Rio Grande do Sul (ACCIRS) como melhor curta gaúcho de 2019, a animação coloca a sutileza de sua técnica a serviço de uma memorabilia de gestos banais apresentados de forma mágica. O primeiro plano já traz uma tela dividida em três, com imagens de um caneco de alumínio no fogão, um coador apoiado numa garrafa e uma xícara quebrada posta à mesa. Fragmenta-se a simples feitura de um café, que em seguida descobrimos não possuir nada de especial. Depois, avistamos plano e contraplano de uma conversa entre duas figuras esquisitonas que, pouco a pouco, revelam receios e anseios como os de qualquer jovem em sua rotina. Afinal, o cotidiano corrosivo e amargo, repetido tantas vezes em piloto automático, precisa do absurdo de formas e cores para ganhar algum sentido.
Julia, moça negra tomada por questões existenciais, perde pés e mãos sem qualquer explicação. Seu passado vai ficando pra trás, mas não é possível se desvencilhar dele por completo. Logo em seguida, as mãos estão de volta ao lugar, os pés estão novamente no chão, aprisionados mais uma vez ao próprio corpo. Restam as cicatrizes, sempre invisíveis, que ela só consegue compartilhar com Santiago, felino esverdeado que se descobre tigre, mas parece o mais doméstico dos humanos. Papo vai, papo vem, jornais, televisores e companheiros de viagem não dão conta de traduzir em palavras o sentimento entediante que os devora.
Vão-se os anéis, ficam os dedos. Só sei que foi assim trata dos excessos que acumulamos. Santiago carrega consigo uma mochila imensa, que mal passa pela porta. Ele se define como um colecionador. E como Walter Benjamin já dizia, colecionar é lutar contra a dispersão. Qual outra característica poderia representar tão bem os atuais dilemas juvenis? A inestimável quantidade de ruídos sonoros, telas, abas e janelas do mundo virtual faz de nossas vidas uma constante desatenção. O personagem acumula coisas aleatórias, tem medo de esquecê-las pelo caminho e não voltar mais para buscá-las. Entretanto, para seguir rumo à floresta, será necessário se desprender de toda essa bagagem, desnudar-se.
E taí o maior trunfo do filme. É através de seus atributos estéticos que se sustenta uma articulação entre a dispersão e o autoconhecimento. As imagens possuem temas visuais múltiplos. Todo detalhe clama por atenção (da camisa que não deu pra animar aos membros decaídos de Julia, que pululam enquanto ela fala). O olhar percorre vários pontos do quadro em vão, procurando algum tipo de concentração. Mas não há a possibilidade de repouso num único foco. A montagem também contribui pra essa condição descontínua. Planos curtos, mistura de temporalidades, elipses que apontam para espaços pouco definidos. Só é possível se orientar pela conversa entre os personagens, mas ela mesma também é truncada, repleta de silêncios e falta de justificativas.
A vontade de encontrar a si mesmo se torna ponto de convergência para Julia e Santiago. Mas é preciso deixar-se levar por uma vida primitiva, assim como o filme aposta em gestos brutos que não dão certeza aonde aportaremos. Ser primitivo é desbravar seus próprios espaços, sem aviso prévio nem troféu à espera. Agora uma nova vida começa. O felino verde muda de cor e aprende a engatinhar, pode ficar à vontade pra ser selvagem nesse mundão inesperado que o aguarda. O plano final revela os olhos atentos de Julia. Ela necessitará da firmeza deles para guiar seus rumos no caixote onde permanece.
*Professor do curso de cinema da UFPel, crítico e coeditor da revista Rocinante. Convidado pela ACCIRS especialmente para colaborar no Dossiê Melhores do ano 2019.