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Publicado por em set 2, 2019 em Artigos |

O feminino em muitas visões

Por Neusa Barbosa

De Pacarrete a Hebe Camargo, muitas versões do feminino atravessaram os filmes de Gramado em 2019 – no melhor e no pior sentido. De todo modo, pode-se notar uma evolução, na multiplicidade de perfis destas mulheres que percorreram os longas nacionais, estrangeiros e também curtas, dirigidos ou não por diretoras – o que mostra que também os homens estão se abrindo para a necessidade de ultrapassar os clichês limitantes do passado.

Foi sintomático que a galeria feminina fosse iniciada pela intrépida Domingas, a médica vivida por Sonia Braga em Bacurau – que tem um duelo, por assim dizer, olho no olho com o vilão-mor (Udo Kier), ela empunhando apenas a própria valentia diante de um malfeitor pesadamente armado, sem vacilar, sem tremer, numa estratégia certeira para confundir e inquietar. Ganhou ainda mais sentido esta característica da personagem depois que Sonia Braga, no debate do filme em Gramado, assumiu sem hesitação o parentesco espiritual dela com a intrépida vereadora Marielle Franco, cujo assassinato não solucionado continua a assombrar o País. 

O extremo oposto desta contemporaneidade foi encarnado por Gringa (Carmen Maura) e Rita (Dira Paes), as prostitutas sonhadoras de Veneza, de Miguel Falabella, que trouxe de volta um certo ranço, ainda que revestido de uma aura de nostalgia pretensamente poética, em sua visão edulcorada da vida de um bordel, em total descompasso com um enfoque mais genuíno – o que foi uma pena, diante do talento inegável das atrizes e do diretor.

Hebe – A Estrela do Brasil, de Maurício Farias, inscreve-se numa funesta tendência atual de revisitar, aparando excessivamente as arestas, figuras reais do passado recente da televisão brasileira. Interpretada pela doce Andréa Beltrão, a notória apresentadora paulista renasce na tela numa versão muito atenuada de seus traços mais polêmicos – como seu malufismo explícito -, reinventando-a como uma paladina da liberdade de expressão e defensora dos direitos dos gays, nos anos 1980. Faltam nuances aqui, para mostrar que Hebe, na verdade, era implacável apenas na defesa da própria liberdade de expressão e que sua adesão aos gays não chegava a ser uma militância, devendo-se estritamente a razões pessoais. 

Como esposa maltratada pelo marido ciumento (Marco Ricca), é verdade que transparece uma dignidade e coragem pessoal da personagem – mas é pouco para salvar a imagem por demais falsificada de uma das mais ferrenhas conservadoras da cena pública paulistana. 

Adolescente no limite

Amanda (Brídia Moni), a protagonista do drama Raia 4, de Emiliano Cunha, por sua vez, encarnou a implosão, finalmente violenta, de uma adolescente reprimida, incapaz de expressar sentimentos ou demonstrar empatia – uma psicopata virtual dos tempos modernos, num filme que acerta mais no alvo quando compõe o retrato coletivo do que o individual. Da mesma maneira, a composição de Ofélia (Bruna Marquezine), a nadadora incansável de Vou Nadar até Você, de Klaus Mitteldorf, também ficou devendo em complexidade, ofuscada, apesar da ultra-exposição, pela visão um tanto superficial e voyeur dos homens que acompanham sua viagem por meio de câmeras, o espião (Fernando Alves Pinto) e o provável pai (Peter Ketnath). Nos dois casos, sobrou água, faltou dramaturgia.

Pior, muito pior, foi a imagem registrada nas personagens femininas de 30 Anos Blues, de Andradina Azevedo e Dida Andrade, em que as atrizes Carol Melgaço e Julia Ianina vivem duas moças submetidas a uma sujeição insustentável, entre situações descosidas e diálogos inacreditavelmente toscos, num filme que tematiza a imbecilidade masculina um tanto literalmente demais, sem nuances, sem humor, nem ironia minimamente aceitável. 

Figuras de brilho

Numa direção inteiramente diferente, a diretora estreante costarriquenha Antonella Sudasassi Furnis conseguiu compor em El Despertar de las Hormigas, na protagonista Isabel (Daniela Valenciano), uma mulher simples que engendra estratégias eficientes e críveis para escapar ao sufocamento no casamento e na maternidade, com muito mais clareza e direção do que a escitora dividida, vivida pela premiada Julieta Díaz no hesitante drama argentino La Forma de las Horas, de Paula de Luque. 

Um dueto feminino fascinante e complementar ganhou vida no impactante filme costarriquenho-mexicano Dos Fridas, de Ishtar Yasin – diretora que protagonizou talvez o debate mais interessante desta edição, a partir da singularidade de sua origem, uma cidadã do mundo por excelência, russo-iraquiana radicada no México. No filme, Ishtar contracena com Maria de Medeiros, ela encarnando Frida Kahlo e Maria, sua enfermeira e confidente, Judith Ferreto – uma personagem singular, aqui descoberta, que percorre uma trajetória similar, em vários aspectos, à da famosa pintora, relacionando-se, direta ou culturalmente, com figuras emblemáticas do século XX, de Sigmund Freud a Karl Marx, sob o estigma permanente da Morte, que tantos nomes recebe e tantas formas assume na cultura mexicana

Entre os curtas, felizes encarnações do diverso feminino frequentaram A mulher que sou, de Natália Tereza, em que a protagonista, Marta (Cássia Damasceno), vive sem medo a sexualidade de uma mulher madura, numa das cenas de sexo mais sutilmente fotografadas do festival; enquanto isso, a atriz Larissa Bocchino encarnou a juventude elevada à máxima urgência no realismo mágico de Teoria de um Planeta Estranho, de Marco Antônio Pereira, não por acaso um representante originário de Cordisburgo, terra natal do inefável Guimarães Rosa. 

Outras facetas do feminino foram contempladas no denso e multipremiado Marie, de Leo Tabosa, habitado pela transexual Wallie Ruy, a protagonista, e a travesti Divina Valéria, no papel de uma sertaneja que lhe entra naturalmente pela pele, revelando outras dimensões do talento desta rainha dos palcos iluminados e musicais. Fechando o painel, O que a gente faz agora?, de Marina Pontes, viajou com naturalidade pelas incertezas de um par lésbico em pleno processo de enamoramento. 

Finalmente, não se pode deixar de mencionar a homenageada com o troféu Eduardo Abelin desta edição, a diretora, atriz e produtora Carla Camuratti, a inesquecível madrinha da Retomada, com seu icônico Carlota Joaquina – Princesa do Brasil (1995), pedra fundamental de um dos renascimentos mais lapidares do cinema brasileiro. Nada melhor do que seu exemplo para inspirar estes tempos ávidos de uma outra reinvenção para o audiovisual nativo. 

Foto de Edison Vara