O homem em seu estado mais bruto (Sob o Domínio do Medo, 1971)
por Alexandre Bello Machado (aluno do curso de Produção Audiovisual da Ulbra)
“Straw dog” (título original de Sob o Dominio do Medo, de Sam Peckinpah) é um termo equivalente a bode expiatório: algo que serve de motivação aparente para o ser humano dar vazão a diversos tipos de emoções. Qual o menor denominador comum entre todos os homens? Qual é aquele ponto no qual nos despimos de toda sofisticação do homem moderno, e assumimos o que realmente somos? Poucos filmes na história do cinema levantam essa questão de forma tão imparcial, direta e não-romantizada quanto esta obra-prima de Sam Peckinpah.
Somos apresentados à David Sumner, um franzino matemático americano especializado em cálculos relacionados a dinâmicas de planetas, e Amy Sumner, a amável e espirituosa esposa inglesa. Eles se mudam para a cidade natal de Amy, com a intenção de passar um tempo juntos, a sós, e de provir a tranqüilidade necessária para David terminar seu trabalho. Porém, o povo interiorano bota em prática a sua habitual xenofobia, agravada pelo caráter pacifico e carente de “masculinidade exacerbada” de David.
O protagonista contrata alguns rapazes para trabalhar na construção de uma garagem ao lado de sua casa, sem suspeitar que um deles teve um caso com Amy, antes de se conhecerem. É nesse momento que Peckinpah começa a construir a rápida e ascendente frustração de David. Desprezado e diminuído pelos homens da cidade, que o tratam com termos como “mocinha”, e desafiado pela esposa, que como uma criança mimada implora por atenção, ele começa a se sentir oprimido por quem ama e por quem desconhece.
Sem sentimentalismos baratos, Peckinpah nos conduz a uma complexa reflexão sobre as verdadeiras condições naturalistas humanas, sobre nosso real instinto de preservação versus nossas convicções e ideologias. Em uma das cenas mais simbólicas do filme, na qual David é obrigado a confrontar os homens para saber quem matou o gato de sua esposa, o protagonista nos deixa com uma ponta de confiança em uma “evolução” de um covarde para um homem corajoso. Porém, devido à pressão de Amy, David não consegue levar o confronto adiante, e, pior, acaba se tornando um motivo ainda maior de chacota. Fica claro que o objetivo do filme não é construir a imagem de um homem que, aos poucos, vai se tornando mais combativo e que, por fim, se transforma. Não. A intenção é justamente mostrar a explosão, a raiva, o quanto um individuo pode agüentar ser rebaixado e pisado até que resolve, para a surpresa de todos, se colocar no campo de batalha, e sentir a necessidade, não por coragem ou por orgulho, mas por pura fúria instintiva, de dizer “chega”.
Mas, quando esse momento acontece, Peckinpah já nos levou a diversas direções, tanto para nos confundir sobre os reais motivos da explosão do personagem principal quanto para deixar bem claro que os antagonistas não são apenas criações unidimensionais cujos únicos objetivos são os de serem odiáveis. Numa das cenas mais conhecidas e polêmicas do filme, Amy é duplamente estuprada, primeiro por seu antigo amante, depois por um de seus amigos. A natureza ambígua do comportamento de Amy nessa cena, acariciando e beijando o primeiro estuprador, nos leva a pensar qual é o nível de satisfação dela em relação a David. Estaria ela, também, cedendo à atmosfera rústica do lugar e desenvolvendo (ou talvez resgatando) desejos por um tipo de homem menos intelectualizado e mais bruto? Será que Peckinpah tenta desviar a atenção do espectador do “vilão” primário para a personagem da esposa insatisfeita, tentando assim deixar David na ponta de um triangulo de opressão?
Lançado em 1971, Sob O Domínio Do Medo é um filme que foi, desde o momento de seu lançamento, duramente criticado como uma celebração à violência. Essa crítica se segue por praticamente todos os filmes de Peckinpah, mas neste ela tem um significado especialmente irônico: no ponto do filme no qual acontece o estupro, quem assiste é levado a pensar que aquele será o catalisador da brutalidade que virá no terceiro ato. Porém, é aí que a genialidade do diretor funciona mais uma vez: o personagem principal recorre à violência por um motivo muito diferente ao imaginado, e que pode soar extremamente bizarro ao espectador desavisado, mas é perfeitamente coerente com os princípios de David. E é então que se dá a ironia: o motivo aparente era um (a vingança pelo estupro da esposa), mas se torna outro (resistir à invasão de seu próprio lar), este um motivo dificilmente passível de crítica.
Para esses julgadores, perde-se todo o significado da obra. Tanto David quanto seus oponentes têm seus “straw dogs”, pois já não há mais certeza do que os motiva durante a selvageria que se dá. Não existem julgamentos de qual lado estaria certo. Tanto o homem que protege sua propriedade, esposa e um ferido quanto os que tentam invadir o lar de uma família para linchar um individuo que julgam culpado são tratados da mesma forma: forças da natureza, que quando colocadas frente a frente enxergam uma na outra motivos para colocarem em prática seus particulares sensos de justiça.
Incrivelmente, num dado momento, até as linhas que dividem as fronteiras de “quem está do lado de quem” são basicamente apagadas. O espectador já não sabe mais o que pensar. Sete já morreram. Um se transforma (ou volta a ser o que sempre foi?). E a pergunta que Peckinpah deixa, pairando nas nossas mentes, enquanto vemos as ultimas imagens de uma propriedade completamente destruída é: qual o seu “straw dog”?
Sob o Dominio do Medo (Straw Dog)
Direção: Sam Peckinpah
Roteiro: Sam Peckimpah e David Zelag Goodman
Com: Dustin Hoffmann, Susan George, Peter Vaughan e T.P. McKenna
País: EUA/Inglaterra
Ano de lançamento: 1971
Disponível em DVD no Brasil
Duração: 118 minutos