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Publicado por em out 5, 2020 em Artigos |

O Imaginário e a sociedade: cinema fantástico, Gramado e algumas reflexões

Por Isabel Wittmann, integrante do Júri da crítica Accirs/Abraccine do 48º Festival de Cinema de Gramado

O ano de 2020 vai ficar na memória coletiva por sua anormalidade. Os acontecimentos se empilham com um senso de estranheza: as manchas de óleo, os gafanhotos, as queimadas, a pandemia, as eleições. Esses eventos têm um que de apocalípticos ou distópicos quando enfileirados dessa forma. E em meio a isso tudo, os festivais de cinema seguiram, em formato on-line. É o caso do 48º Festival de Cinema de Gramado, que ocorreu entre 18 e 26 de setembro. Os resultados da mudança de formato ainda virão: sem as conversas nos corredores, sem as trocas entre sessões, porém acessível a muito mais pessoas.

Parece clara a relação entre esse continuado clima de estranheza e os filmes fantásticos, sejam de fantasia, terror ou ficção científica, que fizeram parte da seleção. O Brasil e o mundo vêm passando, nos últimos anos, por uma guinada política para o conservadorismo. Enquanto as pessoas perdem direitos, suas vivências e a forma como elas se situam no mundo ao nosso redor são colocados em debate, interseccionando classe, raça e gênero. Nesse sentido, aciono Donna Haraway que, certeira, afirma que a “consciência de classe, de raça ou de gênero é uma conquista que nos foi imposta pela terrível experiência histórica das realidades sociais contraditórias do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado” (HARAWAY, 2009, p.47), ou seja, de todo um processo em que estamos inseridos.

É dessa experiência histórica que brotam algumas das narrativas que testemunhamos no festival. Os corpos, marcados por discursos e práticas em torno de marcadores sociais da diferença, buscam entender o outro e se entender: reflexões e autorreflexões que se materializam no audiovisual, em busca de dar sentido às vivências. E essas narrativas, por sua vez, nos acessam, enquanto espectadores, com o que Edgar Morin chama de “projeções-identificações imaginárias” (MORIN, 2014, p.116).

Todos os mortos, dirigido por Caetano Gotardo e Marco Dutra, é emblemático nesse sentido. A história se passa em 1899, dez anos após a libertação oficial de pessoas escravizadas aqui no Brasil, com as consequências ainda recentes da mudança. O foco são duas famílias: Soares e Nascimento. A primeira é constituída pela mãe e suas filhas, Isabel (Thaia Perez), Ana (Carolina Bianchi) e Maria (Clarissa Kiste), mulheres brancas que eram escravagistas. Elas estão falidas, mas ainda fazem parte de uma aristocracia paulistana tradicional. Na segunda se destaca uma mulher e seu filho, Iná (Mawusi Tulani) e João (Agyei Augusto), pessoas negras e trabalhadoras que ainda sentem o impacto da escravidão.

Todos os mortos, dirigido por Caetano Gotardo e Marco Dutra

A direção de arte impecável de Juliana Lobo nos desloca para o contexto histórico e, como outras obras criadas por membros do coletivo Filmes do Caixote, o filme flerta com o cinema de gênero. Há uma constante sensação de ameaça por parte daquelas que não querem deixar o passado para trás. A cordialidade esconde o desejo de subjugar e a negação das novas formas de composição social. A inserção de objetos e ruídos contemporâneos realça um passado que se aproxima do presente.

As próprias identidades sobre as quais a obra dialoga são colocadas em xeque. Como falar sobre herança da escravidão na sociedade de hoje? E sobre o racismo que nunca acaba? Qual é o protagonismo colocado em cena quando se trata de pessoas negras e pessoas brancas? Que corpos praticam quais ações que testemunhamos? O que o filme nos mostra é o fantasma do século XIX que ainda está presente em nossa vida no século XXI.

Inquietações similares perpassaram Um animal amarelo, dirigido por Felipe Bragança, em que o protagonista, Fernando (Higor Campagnaro), é um cineasta que é reiteradamente lembrado pelos demais do seu lugar de branquitude e se embrenha em uma aventura fantástica que repassa nosso passado-presente. O filme também aborda a maneira como ele performa sua masculinidade e o olhar que lança aos corpos femininos desde cedo. A exploração de nossa realidade pós-colonial se expande para Moçambique, outra colônia portuguesa, e para a própria metrópole, em uma tentativa de dar sentido a essas relações no indivíduo de hoje. Isso sem nunca esquecer que em todos os encontros entabulados entre as personagens, ele não tem como deixar de ser um homem branco, rodeado por corpos racializados ou generificados, ainda que vindo de um país subalternizado, onde “o sangue da história corre nas ruas de novo”.

Dessa forma, é interessante notar como a personagem principal do curta Inabitável, dirigido por Matheus Farias e Enock Carvalho, é um corpo ausente. Nesse sci-fi ciborgue queer, conhecemos a protagonista, Roberta (Eduarda Lemos), pela forma como ela se materializa na fala e no carinho de sua mãe e de uma amiga. Sem chamar atenção para o fato de ser uma mulher transgênero, é nos pequenos detalhes que ficam implícitos os medos e violências cotidianos, que explicam porque nosso planeta e nossa realidade recebem o adjetivo do título: quando um corpo não cabe no planeta em que ele está, não por falta de querer, mas pelos outros. Pensar em uma saída ficcional pode ser a resposta do agora.

Conforme Laura Mulvey, “a fascinação pelo cinema é reforçada não só por modelos preexistentes de fascinação, já operando nas subjetividades como também pelas formações sociais que a moldaram” (MULVEY, p.437). Dessa forma, é possível inferir que o cinema reflete sobre questões contemporâneas que nos são urgentes, e o cinema fantástico, em específico, experimenta com a linguagem e a narrativa para desdobrar essas inquietações. Kristin Thompson e David Bordwell afirmam que o cinema de gênero se constrói sobre o medo de certas pessoas das minorias oprimidas (BORDWELL; THOMPSON, 2013, p.527), mas vemos uma inversão crescente nessa lógica, de forma que pessoas privilegiadas questionam seu papel na opressão e categorias oprimidas encontram espaço para falar de si.

Por fim, Alice Fátima Martins ressalta que os filmes fantásticos se relacionam aos desejos que habitam nossos imaginários “no que diz respeito às transformações, sempre em curso, do corpus social” do qual fazemos parte conforme a visão “das comunidades que realizam esses filmes, suas visões de mundo, suas tensões e conflitos, suas lutas de poder, suas ideologias, seu conhecimento produzido e em processo de produção, suas instituições, reais e imaginárias” (MARTINS, 2013, p.39). Por isso faz sentido que, enquanto nós, como sociedade, andamos por caminhos espinhosos, que parecem oferecer poucas saídas otimistas, o imaginário do audiovisual busque entender nosso lugar (ou nossos lugares) em outras rotas possíveis, sobre os temas nele elaborados, como uma possiblidade de analisar o nosso próprio contexto contemporâneo. Afinal, como bem demonstra o curta 4 Bilhões de infinitos, de Marco Antonio Pereira, o cinema evoca inesgotavelmente a possiblidade de magia.

Referências:
BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A Arte do Cinema. Campinas: Unicamp/EDUSP, 2013.
HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue- Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna; HARI, Kunzru; TOMAZ, Tadeu (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
MARTINS, Alice Fátima. Saudades do Futuro: Ficção científica no cinema e o imaginário social sobre o devir. Brasília: Editora UnB, 2013.
MORIN, Edgar. O Cinema ou o Homem Imaginário: Ensaio de Antropologia sociológica. São Paulo: É Realizações Editora, 2014.
MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail (org.). A Experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal, Embrafilme, 1983. P. 437-453.