O poder da reconstrução da memória no Gauchão do Festival 50º Festival de Cinema de Gramado, por Maria Caú
A seleção da competitiva de curtas-metragens gaúchos do Festival de Gramado, apelidada carinhosamente de “o Gauchão”, teve como destaque nesta 50ª edição os filmes de não ficção. Muito embora a seleção equilibrasse documentários e ficção (dos dezessete filmes selecionados, nove eram obras de não ficção, contra oito ficções), os documentários se revelaram mais potentes, apresentando propostas estéticas e narrativas mais ousadas. Quem acompanha os festivais nacionais tem notado há algum tempo que o documentário nacional, ao lado dos filmes de gênero híbrido, que caminham na linha tênue entre o documentário e a ficção, vem afirmando sua capacidade de reinvenção constante. Talvez porque hoje em dia, num Brasil de extremos, a necessidade de investigar o real se faz premente, assim como o desejo de resgatar a memória e revisitar o passado para compreender um presente opressor e imaginar futuros possíveis. Desse modo, o documentário surge como o caminho fértil que jovens cineastas escolhem trilhar para ajudar a reconstruir o cenário em ruínas da arte independe brasileira. E o que é o documentário em curta-metragem se não uma das maiores expressões da arte independente do nosso país?
Neste caminho, a mostra trouxe títulos bastante significativos, como Mby´Á Nhendu – O som do espírito guarani, em que o diretor Gerson Karaí Gomes registra a relação da comunidade Mbyá Guarani (etnia do Sul do Brasil) com a música, sublinhando as interferências dos brancos e a necessidade do registro e da perpetuação das canções típicas, que carregam a memória deste povo (o curta ganhou o prêmio de melhor trilha sonora).
Ainda na seleção do gauchão, uma animação documental de apenas quatro minutos e quarenta segundos, intitulada A diferença entre mongóis e mongoloides, impressionou por explorar um tema pouco tratado através de uma narrativa leve, fluida e muito concisa, com o diretor Jonatas Rubert narrando sua relação com os dois membros de sua família portadores da Síndrome de Down, em especial seu irmão caçula, Tiago. O curtinha é adorável e consegue emocionar mesmo com sua breve duração. A diferença… venceu o Prêmio Assembleia Legislativa (concedido à mostra) nas categorias de melhor direção, roteiro e direção de arte.
Apenas para registro, que levou o prêmio de melhor filme pelo Júri da Accirs, é um trabalho universitário bastante afetivo, em que a diretora Valentina Ritter retrabalha filmagens caseiras feitas amadoramente por seu pai, “apenas para registro”, ressignificando essas imagens ao deslocá-las de seu propósito original de manutenção da memória familiar, de construção de uma espécie de diário filmado do cotidiano. Muito embora a montagem traga alguns exageros no afã de dar ao filme uma roupagem dita experimental que nada agrega ao projeto, há diversos momentos tocantes ao longo dos dez minutos da obra, com o pai de Valentina, Sergio, emergindo como um personagem que atrai a atenção do público com uma mistura fascinante de ingenuidade interiorana e excentricidade.
Se os três filmes já citados lidam com o poder da memória em suas dimensões histórica e familiar, o grande vencedor da mostra, Sinal de Alerta – Lory F, une essas duas pontas da memória de forma habilidosa. O curta do diretor Fredericco Restori traz à tona a personalidade explosiva e multifacetada da roqueira gaúcha Lory Finocchiaro, baixista e compositora que integrou diversas bandas nos anos 1980 e morreu de AIDS antes de lançar seu primeiro disco solo, álbum celebrado postumamente por sua inventividade. Mesmo sendo considerada uma precursora no cenário do rock nacional, e mais especificamente do rock gaúcho, Lory permanece desconhecida do grande público. O documentário, no entanto, não cede à tentação de pautar sua narrativa pela necessidade de apresentar a personagem ao espectador detalhadamente, destacando sua importância através de múltiplas fontes de notório saber ou demarcando a cronologia dos fatos de sua vida e sua carreira. Em vez disso, o diretor escolhe mergulhar nas contradições da musicista, construindo um retrato prismático que desnorteia e mesmeriza, um retrato muito consciente das suas lacunas, que mais interroga do que afirma. Nesta narrativa descompromissada com os parâmetros cronológicos da reportagem em que se resgata um personagem notório, as entrevistas com família e amigos se mesclam a imagens e sons de arquivo hipnóticos, que dão conta da impossibilidade de desvendar o mistério dessa mulher.
A personalidade de Lory imprime sua marca na tela através de suas muitas facetas, num mosaico de uma jovem questionadora e inteligente, de composições marcantes, um tanto autodestrutiva e que deu corpo às contradições de ser mulher no ambiente machista do rock oitentista. O amoroso depoimento do filho Ricardo, hoje também músico, é especialmente marcante porque não se furta a traçar o retrato de uma mãe que seguia a mesma cartilha de um pai roqueiro, priorizando sua carreira e levando o filho bebê para ensaios barulhentos em ambientes não necessariamente adequados para uma criança. Neste ponto, o incômodo é entender que essas histórias perturbam principalmente por terem por personagem central uma mulher, que contraditoriamente revela uma coragem pulsante ao agir como os garotos agiam, o que também fica evidente na relação de Lory com a sexualidade e em suas experimentações com as drogas.
A montagem, premiada e também assinada pelo diretor, tem a qualidade de um torvelinho em que o olhar se atira com facilidade para emergir com a sensação de que o projeto comportaria um longa-metragem. Esse sentimento, no entanto, talvez revele a grande força do filme, do qual o espectador sai com o desejo íntimo de conhecer melhor Lory, não porque já foi apresentado a ela, mas porque entende essa personagem em parte como signo dos muitos apagamentos femininos na arte brasileira, mas principalmente, profundamente, como enigma.
Crédito da imagem da publicação: Diego Vara / Pressphoto.