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Publicado por em mar 23, 2014 em Artigos |

O segredo de Mussolini

vincere01Ao resgatar a figura de Ida Dalser, primeira esposa do ditador fascista, Bellocchio propõe uma analogia entre a obsessão de uma mulher e a adoração de um povo

Flávio Guirland*

Marco Bellocchio teve uma estréia marcante no cinema, com I pugni in tasca (1965), “os punhos no bolso”, numa tradução livre, dirigido com apenas vinte e seis anos de idade. O filme chamou logo a atenção da crítica, por seu caráter provocador, e assim o foram muitas de suas obras seguintes, como China vizinha (1967) ou O monstro na primeira página (1972). Cineasta prolífico ao longo de seus quase cinquenta anos de carreira (são vinte e três filmes para o cinema, um para a TV, além de seis documentários), Bellocchio tem abordado, com frequência, assuntos relacionados à política ou a personagens da vida pública italiana. A sua inclinação por um cinema de tendência política (melhor seria dizer, por um cinema “politizado”), encontra um prosseguimento natural em Bom dia, noite (2004), sobre o rapto e execução do Primeiro Ministro Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas, e em Vincere (2009) que traz à tona um episódio há muito sepultado pela historiografia oficial peninsular: a vida de Ida Dalser, amante do jovem Benito Mussolini.

Até hoje não há registros do casamento entre Ida e Mussolini, mas não é de se duvidar que se um dia tal documentação existiu, ela foi destruída. Recentes trabalhos de pesquisa — que resultaram em dois livros e em um documentário, Il segreto di Mussolini (2005), dirigido pelo jornalista Marco Zeni — revelaram a existência de uma ordem expedida pelo Conselho de Milão para que fosse efetuado o pagamento regular de uma pensão para “sua esposa”. O que se sabe ao certo, é que em princípios de 1909 Ida e Mussolini mantiveram uma relação, e que ela financiou o início de sua carreira política. Em novembro de 1915, quando ele estava lutando na Primeira Guerra, Ida deu à luz Benito Albino. Transcorrido apenas um mês, Mussolini casou-se com Rachele Guidi, uma mulher com quem vivia desde 1910, e com quem já havia tido uma filha, Edda. Ele nunca reconheceu Ida Dalser como esposa, ou o filho, Albino. Utilizou o poder do Estado para suprimir qualquer vestígio dessa união, e internou Ida em um sanatório psiquiátrico (onde ela viria a falecer em 1937), quando suas reinvidicações tornaram-se por demais insistentes.

Pois bem, Vincere (“vencer”) tem início no ano de 1907, e Bellocchio, numa exposição que dura apenas alguma cenas, apresenta-nos Mussolini como um personagem essencialmente contraditório.

A primeira delas ocorre durante um congresso de teologia, numa sala abarrotada, onde o então socialista Mussolini (Filipo Timi) dirige-se à audiência. Ele toma um relógio emprestado, e desafia o Todo Poderoso a fulminá-lo num prazo cronometrado de cinco minutos. Enquanto o tempo passa, Ida (Giovanna Mezzogiorno) observa Mussolini hipnotizada. Esgotados os cinco minutos, ele olha para o relógio e declara: “Se ainda estou vivo, é porque Deus não existe”. A platéia entra em convulsão. Alguns dos presentes avançam sobre Mussolini. Ele salta de cima da mesa e foge em direção à porta de saída. A cena é ao mesmo tempo folclórica e erótica. Il Duce mostra-se aqui como um revolucionário idealista, uma figura vibrante e arrebatadora. A sua retórica, no entanto, é vazia, não passa de um teatro de efeito barato. Mais do que isso, já é possível perceber, por trás de seu discurso, uma perigosa sede de poder.

Na cena seguinte, Mussolini surge no meio da noite, fugindo de um protesto dos Socialistas desbaratado pelas forças policiais. Em disparada pelas ruas, assustado, ele encontra Ida (que seguia o tumulto à distância), e implora que ela ajude-o a se esconder de seus perseguidores. Eles fingem ser um casal de namorados. Ao separarem-se, Ida descobre sua mão manchada de sangue, num funesto presságio do que viria a ser sua relação com o futuro ditador. Este forte contraste na caracterização da personalidade de Mussolini — ao mesmo tempo poderoso e vulnerável, estóico e oportunista — auxilia-nos a compreender a atração que Ida sentirá por ele, e nos dá um importante fundamento para a caracterização do personagem ao longo do filme.

Numa outra sequência, durante um novo enfrentamento dos Socialistas com a polícia, Mussolini está posicionado na linha de frente, e volta à carga com todas as forças: “Com as vísceras do último papa estrangularemos o último rei!”. Ida, que trabalha numa loja em frente, consegue intrometer-se na manifestação e entregar um recado ao pretendido. Segue-se a pancadaria. Mussolini, novamente senhor de si, reaparece como um líder feroz, de declarada posição anarquista. Em pouco tempo, entretanto, ele estará comparando-se a Napoleão, uma figura odiada por seus companheiros de partido. E numa cena de sexo com Ida, alheio às súplicas de amor, seus olhos revirados emergirão das trevas, como os de uma besta.

Não deixa de ser notável o cuidado de Bellocchio em intercalar (e fazer coincidir) as situações de militância política de Mussolini e os momentos de intimidade com Ida. Dessa forma ele vai costurando, no tecido diegético, as duas instâncias narrativas que irão se desenvolver: a pessoal e a pública. E será a relação entre uma e outra que irá gerar a força motriz do filme. Pois ao contar a história de Ida, ele também irá contar a história da Itália: seduzida, abandonada e, depois, destruída por um líder carismático e enganador.

Assim, a obsessão de Ida por Mussolini irá encontrar reverberação, em esfera mais ampla, num fenômeno de histeria coletiva. Ao estabelecer uma analogia entre a difícil situação de esposa rejeitada e a relação da Itália com o seu ditador fascista, Bellocchio irá propor um estudo psicológico sobre a obsessão sexual de uma mulher e seu reflexo na mística formada em torno de um personagem de inegável carisma político.

O mecanismo de projeção como instrumento do poder

O Mussolini por quem Ida apaixona-se, um homem vibrante, de superlativa masculinidade é, na verdade, uma figura idealizada. Isso fica evidente quando assistimos às imagens de um cinejornal onde o verdadeiro Mussolini aparece (calvo, atarracado, de uma imponência caricatural). A dissonância é propositada. E a fixação de Ida por esta imagem construída fica ainda mais evidente, quando a vemos duplicada no filho, Albino, interpretado pelo mesmo ator, Filipo Timi.

Projeção é o termo chave aqui. E é, do mesmo modo, um assunto recorrente no filme (em várias cenas testemunhamos as pessoas assistindo a imagens projetadas em uma tela de cinema). A formulação de conceito de projeção como realidade — no qual os personagens aceitem uma em substituição da outra — é estabelecido já numa das cenas iniciais, quando Mussolini levanta-se nu durante a madrugada, e caminha até a sacada do apartamento de Ida, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. A rua está deserta, mas ele enxerga, através de uma imagem de arquivo, a multidão que um dia o aclamará (enquanto Ida o cobre com um manto — na verdade, um cobertor).

Numa outra cena, Mussolini e Ida estão numa sala de cinema, onde outro noticiário anuncia o ingresso da Itália na Primeira Guerra. Motivo este que incita um confronto entre duas facções da audiência, pró e anti-conflito, situadas literalmente em lados opostos da platéia. Quando a troca de socos se inicia, Bellocchio filma a pequena multidão em silhueta, como sombras indistinguíveis daquelas projetadas na tela. Tal estratégia parece insinuar a habilidade da propaganda política em reduzir os indivíduos a meros marionetes, incapazes de articular qualquer pensamento independente, tal como as figuras em celulóide às quais eles facilmente se misturam.

Tempos depois, Mussolini encontra-se ferido num hospital, onde o filme Christus (de Giulio Antamoro, 1916), é projetado no teto — como numa igreja — para os pacientes deitados em suas camas. Fica evidente que Mussolini vê a si próprio como Cristo, e que a imagem do “Nosso Senhor” inspira-o em suas ambições super-humanas.

O motivo da projeção está presente em vários momentos, e em muitos deles sugere que um país inteiro esteve trespassado pela adoração da imagem que Mussolini construiu para si mesmo. Por outro lado, é também interessante a maneira como Vincere nos mostra uma imagem do ditador diferente daquela que estamos acostumados a ver: o baixote com uniforme repleto de medalhas e mandíbula proeminente. O filme de Bellocchio, neste sentido, talvez nos ajude a entender como a figura verdadeiramente grotesca que conhecemos pôde alcançar tamanho relevo.

Caindo no abismo

Apesar de Mussolini ser o elemento dramático central em torno do qual a narrativa de Vincere orbita, o filme não se detém tanto sobre a vida do ditador, quanto sobre a intimidade de Ida Dalser, a amante traída, cuja coragem e lealdade levaram-na à beira da loucura. Bellocchio nunca chega a esclarecer o comprometimento de Ida com a ideologia fascista. À medida em que Mussolini afasta-se do partido socialista e assume uma postura mais beligerante, ela continua a dar-lhe total apoio. Numa atitude extrema, quando ele fala de suas ambições em fundar o próprio jornal, Il Popolo d’Italia, Ida se desfaz de todos os seus bens com o único objetivo de financiá-lo. O seu compromisso, entretanto, não é com a posição política de Mussolini. O seu gesto significa, antes de mais nada, uma prova de devoção (no apartamento vazio, o dinheiro repousa sobre a escrivaninha, e ela, nua, sobre o divã).

Internada em sanatórios psiquiátricos pelo resto da vida (foram onze anos), Ida reivindica obstinadamente o reconhecimento de sua condição como esposa de Mussolini, e da condição do filho Albino, como herdeiro. Um protesto resultante nem tanto da ambição em obter vantagens pessoais, quanto da necessidade de ver reconhecido o seu lugar na História. No entanto, à medida em que ela padece no confinamento, o seu estado de sanidade mental passa a ser questionável. Isso porque, apesar de ser evidente o fato de que ela foi injustamente diagnosticada como senil — a certa altura, até mesmo as freiras do sanatório tem conhecimento de que ela é esposa de Mussolini, e Albino, o filho — Ida insiste na crença quixotesca de que Il Duce ainda a ama, e na suposição de que a sua clausura é, na verdade, um teste de fidelidade.

À medida em que os anos transcorrem, Ida permanece desafiante na luta pela legitimidade de seu casamento, e as autoridades continuam recusando-se a permitir que ela veja o filho. Essa situação faz com que o seu desgaste psicológico torne-se crítico. Ela passa a explodir em declamações apaixonadas, a subir na grade do asilo para gritar aos transeuntes e arremessar cartas que nunca chegarão a seus destinatários. O notável nessa longa sequência (quase metade do filme) não é apenas a extraordinária interpretação de Giovanna Mezzogiorno, mas a habilidade de Bellocchio em fazer com que o espectador passe por um verdadeiro caleidoscópio de emoções e desenvolvimentos dramáticos, sem nunca perder a identificação com a personagem.

Numa cena chave, Ida assiste, junto com outros internos, à projeção de O garoto, de Charles Chaplin (1921) — mais uma vez aqui, o tema da projeção. No momento em que “o vagabundo” é separado de seu menino, Ida entra em um estado de agitação febril, que aos poucos cede espaço a lágrimas de alívio, quando as duas figuras, apesar de todas as perseguições, conseguem novamente ficar juntas. Uma vez que semelhante reunião é negada a Ida na vida real, ela consegue ao menos viver uma catarse através da hábil manipulação de imagens no filme de Carlitos. É em momentos como esse que Bellocchio reafirma o poder do cinema — para além de seu uso como ferramenta demagógica — em trazer algum tipo de redenção.

A ficção como forma de reescrever a História

A abordagem cinematográfica do diretor italiano é ao mesmo tempo inventiva e arrebatadora. Ele utiliza não somente imagens de cinejornais e outros filmes do período, mas também letreiros (vistos na tela como slogans de propaganda), arte futurista, e até mesmo animações. Em um determinado momento, a palavra AUDÁCIA (que cresce de tamanho, originada de uma legenda de um filme antigo), preenche a tela numa repetição rítmica. Este tipo de recurso visual (já utilizado de forma mais rudimentar por Eisenstein e Vertov, na década de 1920), é tanto capaz de transmitir o sentimento que inspira Mussolini e Ida, quanto de capturar o agitado espírito daquela época.

Vincere trabalha em um registro grandioso, operístico . E não poderia ser diferente, dado o caráter épico de sua trama. A angústia de seus personagens ecoa o sentimento trágico e apaixonado que habita a alma italiana. Do desastrado duelo de Mussolini à peregrinação de Ida pelas instituições de doença mental, e a sua separação do filho, a sucessão de acontecimentos — todos eles compostos por imagens memoráveis, como as de Ida lançando as cartas durante uma nevasca — evocam os grandes melodramas de amor da história do cinema, como Senso de Luchino Visconti (1954), ou A história de Adèle H, de François Truffaut (1975). Bellocchio, entretanto, vai além e, mantendo-se fiel a seu estilo, consegue transcender o aspecto despolitizado que costuma marcar o gênero.

Tal fato ocorre porque Vincere não resume-se ao simples resgate de um fato histórico. Mais do que isso, procura questionar os próprios métodos de representação da História. Ao introduzir uma parcela significativa de material de arquivo em seu filme, Bellocchio chama a atenção para o fato da historiografia ser também cunhada por de um conjunto de imagens. Essas imagens, produzidas e divulgadas por órgãos oficiais de governos, ou por entidades a eles ligadas, permanecem no universo midiático como fragmentos de uma “memória coletiva” e, desta forma, acabam por constituir uma “versão oficial” dos acontecimentos. Pois às imagens oficiais apresentadas em Vincere, Bellocchio contrapõe as suas próprias e, deste modo, procura relatar uma versão alternativa, “não-oficial”, da História.

* Realizador, Mestre em Multimeios pela

UNICAMP, docente no Curso de Produção

Audiovisual da ULBRA

Publicado na revista Teorema nº 17, dez 2010, pp.10-14

[1] Essa entonação é sem dúvida reforçada pela trilha sonora de Carlo Crivelli que, em muitos momentos, chega a lembrar a música de Bernard Herrmann.