O terror social em As Boas Maneiras
Por Ivonete Pinto, artigo inédito, especialmente publicado pelo site da Accirs
Com lobisomem sertanejo, Juliana Rojas e Marco Dutra inventam um terror brasileiro, pleno de elementos para pensar o País, tanto quanto o expressionismo pensou a Alemanha.
No clássico De Caligari a Hitler, Siegfried Kracauer afirma que os filmes derivados do O Gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene, 1919) acentuam o surgimento de impulsos desordenados em um mundo caótico. Ele os chamou de “filmes de instintos”. Abarcando outros títulos, em especial os roteirizados por Carl Mayer, Kracauer encontrou nas obras traços comuns, onde se sobressaem personagens representantes da pequena burguesia, criaturas oprimidas e atormentadas, incapazes de sublimar seus instintos.
Os filmes do expressionismo alemão, em que podemos incluir o tardio (para fins de delimitação da escola) M, o Vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang, 1931), trabalhavam com o horror, que florescia justamente num momento de transição da sociedade, no caso, a alemã pós guerra, e que vivia em profunda crise econômica e moral. O medo era o sentimento que predominava e o medo é a palavra compulsória quando colocamos para análise filmes como As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017). Nem é preciso nos determos na crise brasileira moral e econômica, neste momento quase trágico em que as liberdades democráticas são ameaçadas para falarmos do medo que as personagens de As Boas Maneiras metaforizam.
Curioso é que isto envolve um paradoxo: se vivemos aterrorizados, por múltiplas razões, o tempo todo, porque haveríamos nós de ir ao cinema para sentir mais medo? Para substituir por um medo inofensivo porque não pode pular da tela?
Em outra chave e outra época (anos 70), Pauline Kael , em Fear of movies (in: The age of movies, 2016), fala que jovens espectadores gostavam de ter a experiência do senso de perigo, como parte da atração por certos filmes. Mas outros espectadores preferiam manter uma distância. E para usar exemplos desta segunda categoria, Kael cita títulos como O Céu Pode Esperar (Heaven Can Wait, Warren Beatty, Buck Henry, 1978) e, quem diria, Dona Flor e seus Dois Maridos (Bruno Barreto, 1976). Ambos, só para lembrar, apresentam fantasmas. Mortos que convivem com vivos no registro do humor. Kael chama de espectadores que gostam da placidez da arte agradável.
Juliana Rojas e Marcos Dutra não nos oferecem uma arte agradável. Embora fazendo uso de uma fotografia que prima pelo bom gosto – como o suntuoso plano noturno da cidade com a lua ao fundo, em uma das poucas externas do filme -, está longe de ser “agradável”. Está ligado ao medo, embora o que seja mostrado não seja a mola propulsora deste medo (a criança lobisomem é até fofa). Uma leitura possível do filme nos diz que ele está mais na motivação de quem fez do que na reação da plateia. Neste sentido, são plenos os significados do referido cenário do expressionismo alemão. E podemos voltar com mais segurança às palavras de Kracauer quanto a uma pequena burguesia e seus medos. Ou seja, nossa classe média que vive apavorada.
A despeito do que disse Inácio Araújo, de que As Boas Maneiras é mais um filme de amor do que de horror (Canto do Inácio, 16/07/2018), é provável que se a perspectiva é o momento de medo da classe média, sejamos inclinados a pensar mais no horror mesmo. Evidente que o filme se move pelo amor: o amor das duas protagonistas e o amor (quase) filial da empregada pelo filho da patroa. Mas se reconhecemos nestas personagens, de imediato, uma relação de classe que as identifica, como dizer que se trata mais de amor do que de horror? Que horror é este?
As Boas Maneiras pensa o Brasil utilizando com engenho os tropos do gênero, agregando o debate social tanto quanto outro nome emergente nesta seara, o de Gabriela Amaral Almeida, que veio com dois filmes terror em 2018: lançou comercialmente Animal Cordial e no Festival de Brasília A Sombra do Pai. Rojas (quase sempre acompanhada de Marco Dutra em suas incursões na direção), forma com Gabriela Almeida nomes afinados que se diferenciam entre si pela quantidade de sangue. Enquanto a primeira escapa do sangue gráfico, a outra segue o subgênero gore, da violência explícita. Ambas, de todo modo, estão unidas pelo sangue de Godard (a bela máxima de que no cinema não existe sangue, existe o vermelho). Isto porque estamos falando de cineastas que vão além das bobajadas do gênero, que se exercitaram com dedicação e êxito em curtas anteriores, a quem não interessa o horror pelo horror, nem as metáforas fáceis. Neste ponto, é oportuno lembrar que quando se trata de horror e terror, tudo está no guarda-chuva do fantástico. Dentro dele, o horror implica em sentimento de repulsa, o terror em ansiedade e medo. Assim, na comparação entre os dois filmes, Rojas/Dutra aproximam-se mais do terror.
Numa visada retrospectiva, as produções de Rojas encaixam-se nesta definição de terror, como O Duplo (2012), onde o ambiente escolar-religioso afeta tanto a personagem ao ponto dela se multiplicar, de gerar um espectro atormentado (todo espectro é atormentado?). No longa Trabalhar Cansa (2011), em codireção com Marco Dutra, tínhamos o “monstro” emparedado que era o medo da classe média a enfrentar seus demônios e precisando se reinventar. Em As Boas Maneiras há um monstro que não se esconde, porém há mais camadas (vamos pular Sinfonia da Necrópole, 2014, não por ser musical, mas porque suas intenções parecem mais embaralhadas) e um parentesco óbvio com O Bebê de Rosemary (Polansky, 1968). Só que o filme brasileiro avança no tempo ao acompanhar a criação do bebê, mantendo o suspense psicológico, e segue outra direção ao escancarar as relações de classe apenas anunciadas em Polansky. Enquanto ali o casal vivido por John Cassavetes e Mia Farrow começam o filme falando da necessidade de conseguir trabalho mais qualificado como ator – e isto vai levar o marido a vender a alma ao diabo – em Rojas/Dutra temos as primeiras sequências ocupadas com as entrevistas de emprego para babá. Já ali há o destaque para a mais valia, a exploração de quem seria contratada para uma coisa, mas deveria aceitar fazer outras. E a mais valia evolui tanto que a babá vira doméstica, que vira amante, que vira mãe. E então o sublime do instinto maternal toma conta dos sentimentos (e das interpretações até de críticos mais empedernidos). Porém, de fato o que se coloca é a lógica do lucro do sistema capitalista tão aguda que se transforma em sentimento “genuíno”.
Tentando situar o cinema praticado por Juliana Rojas e Marco Dutra, onde a eles somam-se os diretores que sistematicamente apostam no gênero terror/horror, como a citada Gabriela Almeida, Dennison Ramalho e Rodrigo Aragão, podemos mencionar o vigoroso Grave (2016), da jovem diretora francesa Julia Ducournau. Esse gore ganhou o prêmio Fipresci em Cannes, se insere nesta nova onda de filmes de horror+terror que não são propriamente populares, e mesmo investindo no aspecto psicológico com viés social, carregam no sangue explícito (considerando neste raciocínio que sangue explícito é atributo do popular, mas nem sempre funciona assim). Acima de tudo, este segmento propõe um cinema cheio de estratos, sintonizado no nosso tempo, que expõe comportamentos onde a violência não é gratuita. Talvez seja um talento e uma preferência geracional que explicam a boa safra de filmes, pois não daria para imaginar uma Agnès Varda fazendo este tipo de gênero… E as influências das duas jovens de 30 e poucos anos, Juliana Rojas e Gabriela Almeida, seguramente vêm de cinematografias estrangeiras, pois até poucos anos nossa maior referência era Zé do Caixão.
Que realismo é este?
O que faz a sofisticação e causa medo em As Boas Maneiras e em Trabalhar Cansa não é o seu horror, mas seu realismo. Bazin, quem sabe, poderia se dedicar ao filme, porque ao contrário do senso comum na academia, ele não propugnava por um realismo sem inventividade, de modo que contrabandear a fantasia para dentro de um drama pode funcionar para potencializar o realismo. As Boas Maneiras trabalha com personagens cuja empatia é inegável, muito em função de suas duas protagonistas. A esplêndida atriz portuguesa Isabél Zuaa, que convence em cada frase e em cada gesto como a empregada Clara. E o que é a Ana, defendida com energia por Marjorie Estiano? É a construção quase documental da nova rica sertaneja. Fútil, ignorante e com má-consciência de classe, é um ser humano capaz de transformação (ao menos a paixão pela empregada sugere isto, mas pode ser uma falsa pista de redenção). Há tragédia na sua gravidez sobrenatural e em sua morte. E há humor no seu tipo vulgar e verossímil ao ponto da plateia poder concluir como moral da história: é o que dá ficar ouvindo sertanejo universitário na gravidez…
Em tempo: ao propormos falar de realismo, convém não confundir com naturalismo. Rojas/Dutra declaram guerra ao naturalismo em seus filmes, dentre outras razões por introduzirem o musical (a expressão “guerra ao naturalismo” é usada por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia ao falar do coro grego). Como numa catalogação de autorreferências, os diretores inserem atores de outros filmes. Cida Moreira, por exemplo, faz uma vizinha que toca piano e do nada começa a cantar como no sistema de mistura de gêneros bollywoodiano (Eduardo Escorel, em seu blog da Piauí, no dia 12/07/2018 escreveu acidamente: “diálogos em verso, cantados como no musical Os Guarda-Chuvas do Amor”). O enxerto pode chocar e soar destrambelhado, mas coloquemos na conta das autorreferências para forjar diálogo entre outros filmes da dupla, e pensemos, principalmente, no coro grego; pensemos que a vizinha pode representar o povo que comenta o que vê, que precisa se distanciar do registro naturalista para que seu comentário pertença e não pertença à cena. Aliás, se invocarmos Nietzsche um pouco mais, fica valendo sua ideia de que os gregos, ao lançarem mão das tragédias, se desobrigaram “a efetuar uma penosa retratação servil da realidade” (2007, p. 51).Quando Rojas/Dutra recorrem a efeitos especiais ̶ realizados na França com inegável qualidade, é porque prezam pela crença do espectador. Há explicações razoáveis para tudo o que acontece, desde como o bebê de Ana foi gerado, até as fases de seu crescimento com as modificações do corpo. É um compromisso com o realismo e não com o naturalismo.
Com isto queremos dizer que a recorrência ao horror e mesmo ao musical em um só filme, não tira As Boas Maneiras de seu pé no real, de sua interpretação da realidade, de sua visão da tragédia nacional, sempre a deixar os brasileiros com a respiração suspensa. Dentro do universo da fantasia, tudo pode ser crível e transformador, como afirmado por Nietzsche: “(…) aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as quais é possível viver: são elas o sublime, enquanto domesticação artística do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da náusea do absurdo. O coro satírico do ditirambo é o ato salvador da arte grega (…)” (2007, p. 53)
Avançando em direção à entrada da operação musical no filme, e na interpretação do excerto cantante enquanto coro grego, é possível cogitar que sua vinculação estética a um formato de horror produz certo efeito original. Woody Allen, em Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite, 1995) introduziu o coro grego em uma comédia e produziu outro efeito, porque a estranheza estava dentro de um formato mais flexível, mais permeável a objetos de natureza diversa. Por isso, ao associar o musical ao terror, o risco enfrentado por Rojas/Dutra é imenso e requer plateias que entrem no jogo de sofisticação da forma, onde a estranheza faz parte das regras.
Se reconhecemos os inúmeros acertos de As Boas Maneiras, não podemos ignorar que há alguns problemas também. À parte o título codificado demais, cujo sentido levaria a quem se dispusesse a entendê-lo somente a devaneios, os diálogos envolvendo as duas crianças colegas de escola soam artificiais; o roteiro, por sua vez, lança elementos que não dá conta. Por exemplo, há a informação reiterada de que Ana passa por problemas financeiros, provavelmente a família não mande mais dinheiro. O fato não tem qualquer consequência na trama e com tantos nós a resolver este elemento ficou esquecido no desfecho. Lobisomem, vampirismo, lesbianismo, sertanejo, professor/padre, raça, relações sociais, amor filial. Uma profusão de elementos que requerem habilidade na costura, mas há de se admitir que na essência os já experientes roteiristas Rojas e Dutra resolvem com desenvoltura o que poderia ser uma armadilha. Inclusive o fato de serem dois filmes em um, a partir da virada provocada pela morte da mãe e o nascimento do bebê. Funciona.
Para encerrar, voltemos ao expressionismo alemão e suas personagens deformadas, cujo simbolismo nos defrontamos em pleno século XXI. O horror está nas artes, sobretudo na literatura e no cinema. A crise dos refugiados, o terrorismo, o fascismo são temas recorrentes e para moldá-los, o horror/terror como gênero soa como a única metáfora possível. Segundo Krakauer, ainda nos anos 20, quando até então estavam em voga os filmes de matriz expressionista, os alemães começaram a tentar saídas. Buscavam fugir da violência oriunda do instinto para um refúgio espiritual. A Igreja conquistava as mentes de jovens intelectuais afastando o perigo de ideias marxistas. O cinema partiu com tudo para dramas leves, romances açucarados. Enquanto a inflação galopava, o escapismo dos romances mantinha a população com a cabeça ocupada. Se tudo isto pode nos servir de alerta, lembremos que a coisa só piorou com a entrada em cena de um certo austríaco. As Boas Maneiras sugere que estar no Brasil não chega a ser um alento.