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Publicado por em jun 21, 2019 em Uncategorized |

Os debates do seminário internacional O Estado da Crítica

Por Daniel Feix, presidente da Accirs, artigo sobre o seminário realizado entre 30 de maio e 04 de junho que encerrou as comemorações de 10 anos da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul.

“No momento em que tantos demonizam o pensamento crítico, nada mais pertinente do que discutir a crítica.”

A frase é de Enéas de Souza, um dos decanos da crítica cinematográfica gaúcha, e foi proferida no início da histórica conversa com o francês Jean-Michel Frodon após uma das sessões de filmes apresentados no seminário internacional O Estado da Crítica, realizado pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), pelo Curso de Realização Audiovisual da Unisinos (CRAV) e pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em parceria com Aliança Francesa e Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Trata-se de uma sentença que serve para descrever tanto a pertinência do evento quanto o seu norte ao longo de todas as atividades, que levaram mais de duas centenas de pessoas a Unisinos — além de tantas outras ao CineBancários, à Cinemateca Capitólio e à Cinemateca Paulo Amorim, entre 30 de maio e 4 de junho.

Auditório da Unisinos lotado para ouvir Jean-Michel Frodon

Frodon foi o astro do encontro, mas sua presença luminar concentrou apenas parte do brilho emanado dos debates, que contaram com convidados como Andrea Ormond, Fatimarlei Lunardelli, José Geraldo Couto, Kênia Freitas, Ivonete Pinto, Milton do Prado, Paulo Henrique Silva e Sérgio Alpendre. Com suas abordagens particularizadas, que partiram invariavelmente de experiências pessoais, os críticos discutiram o ofício a partir de vieses ao mesmo tempo distintos e complementares, dando uma ideia da complexidade do atual estado da crítica diante das transformações sociais que todos temos testemunhado.

A conferência de Frodon constituiu um momento de exaltação das boas práticas da atividade em meio a essas transformações. Partindo do que chamou de “maus mestres” (as influências negativas advindas do jornalismo, da academia, da publicidade e do mercado), o ex-editor-chefe da Cahiers du Cinéma fez o elogio do texto crítico que mantém a independência fugindo das armadilhas inerentes ao contexto em que a crítica se estabelece: mais do que servir de guia, sem a pretensão de proferir uma sentença, ou uma aula, e indo além de reportar ou propagandear o que os filmes apresentam, é possível alcançar um modo de expressão com estatuto próprio, cuja potência está na sua própria forma. Não que a crítica seja uma linguagem à parte; ela se molda e se fortalece como um exercício que, ao driblar as armadilhas dessas quatro forças circundantes, adquire aspectos específicos.

Jean-Michel Frodon

Daí a pertinência de pensá-la como algo diferente do que simplesmente “dar estrelinhas” ou professorar conceitos científicos criados no ambiente acadêmico — duas atividades que, independentemente das discussões sobre seus valores, possuem outras características, outras formas, outros estatutos.

Nada disso, no entanto, restringe a liberdade da escrita — pelo contrário: fazer crítica é criar, seja a partir de um aspecto bem particular de uma produção, seja com base em uma relação muito localizada entre um filme e um aspecto social, seja com o objetivo de dar conta de um único tema envolvido nesse filme, ou do maior número possível de temas que ele aborda. Criticar é criar. Em revista, jornal, site, vídeo: em texto. Na universidade, no jornalismo, no YouTube: escrevendo.

Frodon trata a escrita da crítica como algo nobre. Na conferência de abertura do seminário, o francês chegou a dizer que, quando começa um texto, não sabe exatamente o que vai afirmar ao longo dele. Não sabe aonde o fluxo da escrita vai levá-lo. Essa associação da criatividade à construção de um pensamento que é distanciado, contudo, não deve desprezar o impacto inicial que o filme causou no crítico, impacto esse percebido de modo não elaborado, quase instintivo, diante da imagem. Um dos grandes desafios da crítica, refletindo a partir da manifestação de Frodon, talvez seja o de racionalizar esse impacto, que é puramente emocional, organizando-o a partir da compreensão daquilo que o ocasionou.

Foi José Geraldo Couto quem disse, na mesa Tensões Contemporâneas da Crítica: a manipulação da linguagem com o objetivo de afetar a percepção precisa ser desconstruída — e a crítica é o recurso e o meio pelo qual isso pode (e deve) ser feito.

Sessão na Cinemateca Capitólio

Parece inevitável, assim, associar a crítica a algum tipo de poder — o poder de afirmar o que está por trás das engrenagens que, movendo-se, construíram o filme como o vemos. Quem o realizou? Como? Com qual intenção? A abrangência e a efetividade desse poder, como defendeu Sérgio Alpendre na mesa Tensões Históricas da Crítica, podem ser limitados. Mas o poder existe. E é justamente por isso que essas perguntas precisam ser respondidas pela crítica — que por sua vez constitui um fórum adequado para respondê-las.

Na mesa Tensões Contemporâneas da Crítica, Kênia Freitas foi instigada a lançar um olhar paralelo entre o longa brasileiro Vazante (Daniela Thomas, 2017) e o blockbuster Pantera Negra (Ryan Coogler, 2018). Sua defesa de que a representação contém significados sobre o contexto em que é produzida, independentemente de se tratar de uma fantasia com trama localizada em um futuro distópico ou de uma narrativa que pretensamente reconstitui fatos históricos do mundo real, leva em conta, além das três perguntas do parágrafo anterior, uma outra forma de entendimento: o filme é um produto de uma sociedade, seja lá qual for a sociedade que suas imagens pretendem representar. Nesse sentido, convém não pensar apenas em quem realizou, como realizou e com qual intenção, mas, ainda, além disso, em que contexto social a realização se deu. O reino fictício de Wakanda pode trazer mais asserções sobre as relações nos Estados Unidos de hoje, dependendo da maneira como ele é encenado, do que um filme que objetivamente se passa nos Estados Unidos de hoje. Do mesmo modo, em um raciocínio kracaueriano, um longa-metragem lançado em meio à atual turbulência do Brasil de 2019 será sempre um filme sobre o Brasil de 2019, mesmo que apresente encenações de episódios situados em outros momentos.

José Geraldo Couto, Kênia Freitas, Milton do Prado e Andrea Ormond

A própria crítica é um ato a ser contextualizado. A relativização é intrínseca a essa prática: o olhar que um texto crítico apresenta é absolutamente particularizado; diz muito sobre o momento em que é elaborado e o entorno habitado por quem o elabora. É uma velha máxima da historiografia, segundo a qual estamos sempre fazendo uma história do presente, mesmo debruçados sobre o passado. Em outras palavras, a leitura de Daniela Thomas sobre a escravidão no século XIX é uma leitura contemporânea, lançada na década de 2010, com a marca da vida na década de 2010, assim como a crítica eventualmente escrita sobre esse longa no momento de sua controversa participação no Festival de Brasília conterá em seu âmago as marcas dessa controvérsia, quer ela seja abordada ou não. Como os filmes e como as pessoas, a crítica é um produto de seu tempo.

Andréa Ormond ilustrou essa máxima com propriedade na mesa Tensões Contemporâneas da Crítica, ao relatar as transformações recentes do ofício, marcadamente devido à ascensão dos blogs e das revistas eletrônicas dos anos 2000. Há aspectos da crítica desenvolvidos e aprofundados em virtude dessa ascensão (a liberdade de abordagem, a pessoalidade, a ausência de limitação de tamanho de texto), que só foi possível porque a tecnologia assim permitiu, mas também e sobretudo porque os homens e as mulheres aproveitaram-se dessa possibilidade.

Mesmo em uma sessão comentada (aquela que contou com Jean-Michel Frodon e Enéas de Souza) essa máxima também esteve presente. Ao responder a uma questão vinda da plateia sobre seu olhar ocidental direcionado aos filmes chineses, o crítico francês respondeu, de maneira lacônica e precisa: “Somos ocidentais.”

Pedro Henrique Silva, Sérgio Alpendre, Fatimarlei Lunardelli e Ivonete Pinto

Não há como proceder de outra forma. Uma etapa fundamental do exercício da crítica é entender a própria condição do crítico. Ter consciência de onde ele está, o que se passa ao seu redor. O que age em torno de quem escreve.

É por isso que se faz fundamental conhecer movimentos e tendências históricas da produção de textos críticos — o que Paulo Henrique Silva esboçou com a organização do livro Trajetória da crítica de cinema no Brasil (Ed. Letramento/Abraccine), lançado no evento, e em sua fala na mesa Tensões Históricas da Crítica, quando, de maneira resumida, apresentou capítulos importantes dessa história.

Mas o que há hoje nesse entorno do exercício da crítica que se mostra absorvido pela sua prática? A julgar pelas abordagens trazidas pelos críticos convidados do seminário, mudanças geracionais, que incluem, entre outros aspectos, uma diversificação de olhares (com a ascensão de críticos negros e mulheres, por exemplo), além de formas de organização a exemplo dos encontros virtuais e da formação de coletivos, entre os quais pode-se citar o próprio estabelecimento de associações de críticos como Accirs e Abraccine. Pouco se falou sobre as mudanças dos leitores e da maneira com que os textos são consumidos — a partir de um questionamento da plateia, Frodon rejeitou com veemência que essas mudanças demandem eventuais adaptações dos críticos, dizendo fazer o mesmo tipo de crítica “desde sempre”. De todo modo, a precarização da leitura está aí e é um fator a ser considerado. Se os críticos, como consequência dela, mudaram ou não o seu modo de se comunicar, essa é uma decisão pessoal de cada um. A questão que fica, e que terá de ser aprofundada não exatamente no futuro, mas desde já, diz respeito à pertinência da crítica em meio a essa precarização. Lembremos que a reflexão sobre a produção artística é uma ponta importante do sistema das artes como um todo. Nesse momento, essa importância cresceu: não basta apenas fazer filmes, mas pensá-los, entendê-los, interpretá-los, o que, atualmente — seguindo o princípio aqui defendido de que um filme e uma crítica são produtos de seu tempo —, pode ajudar a compreender as relações de representatividade entre o que se produz e aquilo que circunda essa produção.