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Publicado por em fev 28, 2020 em Artigos |

Parasita: Corpos estranhos

Por Daniel Rodrigues

O filósofo polonês, Zygmunt Bauman, grande leitor dos nossos tempos, bem descreve que a “modernidade líquida” em que se vive gera, por conta e culpa da globalização descontrolada, o que ele chama de “mixofobia urbana”, a tensão permanentemente desagradável e perturbadora da estranheza ao outro. Essa presença irritante entre estranhos da mesma cidade, vizinhos mas separados pelas diferenças sociais por meio de espaços “interditados”, é, segundo ele, “uma fonte inesgotável de ansiedade e de uma agressão geralmente adormecida, mas que explode continuamente”. O longa sul-coreano Parasita, escrito e dirigido por Bong Joon-ho, é, mais do que uma confirmação ou superação de expectativa, um dos filmes mais perspicazes na leitura destes tempos líquidos. Mordaz e crítico à sociedade capitalista, a obra expõe uma alegoria da vida real, em que, recorrendo aos mais animalescos recursos de sobrevivência nesta selva chamada cidade, todos os caminhos dessa violência sistêmica levam a uma coisa: a morte.

Grande vencedor do Oscar de 2020, levando de forma inédita para um filme falado em outro idioma que não o inglês as estatuetas de Filme, Filme Internacional, Diretor e Roteiro Original, Parasita já havia conquistado outras duas premiações tão importantes quanto: a Palma de Ouro no Festival de Cannes e três Globo de Ouro – Filme, Diretor e Roteiro. A história retrata com humor e suspense as ações de uma família pobre (os Kim), que manipula uma família abastada (os Park) para arrumar trabalho. Através de uma série de mentiras e planos mirabolantes, os vigaristas conseguem se “infiltrar” na mansão luxuosa, como um parasita que habita um corpo sem que ele perceba. A casa, no entanto, também está cheia de mistérios que os Kim vão desvendando ao longo do desenrolar dos fatos.

A densidade psicológica do filme, entretanto, é evidenciada logo de princípio com a fotografia suja da casa onde os Kim moram. Ou melhor: se entocam, haja vista as condições subumanas daquele porão escondido e da indignidade social a que são sujeitados. Para piorar, na era digital não são apenas as condições de moradia, trabalho e ensino que compõem a situação de miserabilidade: a tecnologia se torna mais um elemento de segregação. Se tem internet, está-se vivo; ao contrário, não. As pessoas da família Kim, esteticamente parte essencial deste cenário, são tão emporcalhadas daquela subvida que parecem defuntos. Eis um dos elementos narrativos principais do longa: a morbidez, expressa tanto nas peles e corpos quanto, mais simbolicamente, nas relações sociais e interpessoais. Cenas como o casal Kim enfileirado deitado sobre o chão, o momento em que se arrastam para fugir da mansão sem serem percebidos ou o sono profundo do qual a senhora Park é acordada pela governanta guardam esse aspecto mórbido.

O designo irrefreável da morte, assim como em Kafka, é uma metáfora a vários níveis da sociedade, seja a da oriental sul-coreana ou a do Ocidente. A exclusão das classes desfavorecidas, a displicência cruel do estado liberal, a americanização desmedida – que leva descaracterização/morte cultural – e as feridas não curadas da guerra se embolam, formando um complexo de inseguranças e medo da morte de todos os lados: os miseráveis, já muito próximos dela caso não melhorem sua condição, ou mesmo os ricos, permanentemente alarmados quanto à invasão do “estranho” às suas vidas instavelmente estabelecidas. Num sistema desequilibrado em que se privilegia a superfície, aquilo que é feio e não quisto vai para baixo. É disfarçado, tapado, soterrado. Como defuntos sepultados – ou pessoas enterradas vivas. A casa dos Kim e o bunker da mansão dos Park – cujos portais simbólicos, a porta rodeada de objetos e a que dá acesso ao porão, fazem a ligação entre os espaços “interditados” – são cânceres que inevitavelmente coexistem com o mundo ideal do capitalismo. Mas mesmo que se finja não existirem, o lado escuro é retroalimentado pelo próprio sistema e suas desigualdades. Seus habitantes, proibidos à convivência “civilizada”, são como ratos e insetos que vivem de parasitar. Mas essa interdição, claro, tem seus limites, e é aí que se abre espaço para a explosão de toda a agressividade silenciada.

Tal tensão mixofóbica, vista também em filmes como O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2013) ou Amores Brutos (Alejandro Iñárritu, 2000), inibe tanto a empatia quanto a razão. A tal ponto que resta apenas recorrer aos instintos. Não há planos para o futuro: apenas se deixa os acontecimentos virem, como diz o personagem a certa altura. A esperteza murídea dos Kim de ascenderem do seu subterrâneo a qualquer custo, bem como a superficialidade nada inocente dos Park para com estes e entre eles próprios, são dois lados da mesma miséria. O sexo, a comida e o consumo para a satisfação física são o lado “legal” desta instintividade. Mas as coisas complicam, obviamente, haja vista que ninguém recorre à consciência humana e, assim, a luta pela sobrevivência se impõe. É quanto o individualismo, a perversidade e a violência se juntam a este rol de comportamentos, que remetem ao mais animalesco dos seres. Brilhante a analogia com a figura mítica do índio – originária da criticada sociedade norte-americana –, elemento semiótico fundamental para a cena da festa. O roteiro também encerra esta ideia na sequência da chuvarada, em que a natureza se mostra alertadora, visto que mais implacável do que qualquer disfarce social. Igualmente, a pedra, presenteada aos Kim como um amuleto, e que serviu, no final das contas, como nas cavernas, para abater o inimigo.

Mesmo antes da conquista do Oscar, já estava evidente que Parasita é daqueles divisores-de-águas do cinema. Em certo sentido, países capitalistas em emergência como a Coreia do Sul, o México e o Brasil estão enfrentando momentos de tensão sociopolítica semelhantes em alguns aspectos e diferente noutro, mas certamente transformadores de suas sociedades e, haja vista a polarização reinante a que se é acometido atualmente, de alta carga de mixofobia. Talvez por isso não seja coincidência que o Brasil também viva um momento especial em seu cinema com filmes como A Vida Invisível e Bacurau, principalmente, que, igualmente a “Parasita”, demarcam um “pré” e um “pós” em termos de produção dos países em que se originam. “Bacurau”, aliás, assim como o filme de Joon-ho, também toca na questão da invasão norte-americana e a tentativa de apagamento do outro, do “estranho” – não coincidentemente, do lado mais fraco desta dualidade. Metáforas denunciadoras do que Bauman alertou.

Que obras como estas não sejam apenas corpos estranhos no cenário cinematográfico, mas, sim, uma mudança de paradigma com a aceitação de leituras diferentes da desgastada ideologia imperialista norte-americana. Como parece se anunciar com esta inédita conquista do filme sul-coreano, que signifiquem algo maior do que denúncia e resistência, mas um princípio de consciência e de mudança a quem as assista com olhos de alerta.