Páginas
Seções

Publicado por em jul 17, 2020 em Críticas |

Passagem em aberto

Maurício Vassali

“Maria estava parada há mais de meia hora no ponto de ônibus. Estava cansada de esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a caminhada. O preço da passagem estava aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada.”. O que a Maria escrita por Conceição Evaristo enfrenta a partir de aí é a própria tragédia, diferente da trajetória da personagem, de mesmo nome, escrita por Juliana Balhego em Quero ir para Los Angeles. A conversa entre o curta e o conto presente na coletânea Olhos D’água, contudo, está para além da simples coincidência de Marias protagonistas e da menção de Evaristo no filme: ambas as autoras retratam vivências de mulheres negras contemporâneas. A primeira como empregada doméstica, a segunda como universitária.

No curta, Maria é uma estudante de publicidade que planeja sua viagem à cidade dos sonhos. Moradora da periferia de Porto Alegre, ela divide seu tempo entre o estágio em uma agência e o novo emprego em uma cafeteria. No registro de seu cotidiano, o curta é atravessado o tempo todo pela posição de Maria na tríade classe-raça-gênero. Se em alguns momentos a percepção é mais flagrante, como pelas falas da colega de trabalho que a define como uma “negra diferente”, em outros tal constatação se dá no regime do invisível, como pela ausência de uma figura paterna, jamais mencionada – Maria vive com a mãe, que luta para pagar suas dívidas intermináveis.

A cineasta Juliana Balhego (primeira diretora negra a ser selecionada na mostra gaúcha do Festival de Gramado, onde foi condecorada com o prêmio de melhor roteiro), percebe nos espaços ocupados por Maria uma forma de reiterar o que traz no texto. Para além dos planos fechados, que denotam a falta de perspectiva da personagem em seus ambientes de trabalho, as feições da atriz Manuela Miranda apontam tanto o estado de vigilância e incômodo na agência publicitária, quanto a exaustão que sofre ao longo dos dias na cafeteria. E ainda que os entraves continuem a se apresentar, é no universo doméstico, junto de seus afetos, que a personagem parece melhor expressar seus desejos e subjetividade.

No terceiro ato, próximo de seu desfecho, o curta abandona certo determinismo que o acompanhava até então e oferece um respiro mais evidente à sua protagonista. Talvez Los Angeles não seja um destino imediato, mas é também através do uso do espaço que o filme sugere, pela infinitude do horizonte, o possível nas aspirações de Maria. Sim, a passagem é cara, a sacola é pesada e o cansaço, inegável. Contudo, Quero ir para Los Angeles dá chances à sua protagonista. Há assim uma ruptura entre as personagens escritas por Evaristo e Balhego. Pode ser que a Maria do filme continue à espera, atenta ao que virá. O final de sua trajetória definitivamente não está no ponto de ônibus.

*A passagem citada no início do texto é um trecho do conto “Maria”, de Conceição Evaristo, na referida obra “Olhos D’água”.