Páginas
Seções

Publicado por em jun 12, 2016 em Artigos |

Ponto de Vista: Um olhar sobre “Ponto Zero”, por Adriano de Oliveira Pinto


POnto Zero 3 - foto Amanda Cosptein
Quase trinta anos após codirigir O Dia em que Dorival Encarou a Guarda (1986), um curta fundamental não apenas na história do cinema gaúcho, mas também brasileiro, José Pedro Goulart estreia na direção de longas com Ponto Zero (2015), um artigo diferenciado em relação ao status quo da produção nacional.

O extenso e reconhecido trabalho do cineasta ao longo de décadas na elaboração de filmes publicitários certamente contribuiu em muito para a construção estético-visual de seu longa e fez disso o ponto mais forte da obra. A esmerada fotografia de Rodrigo Graciosa é audaz: faz enquadramentos inusitados, trabalha luz e sombra de modo expressionista, explora as influências noturnas nos matizes, usa bem o close como arma emotiva, emprega câmera trepidante, realiza planos longos e curtos com igual destreza. O design de som, a montagem e a cenografia não são impecáveis, mas funcionam muito bem aos propósitos narrativos. E a trilha sonora de Leo Henkin, um pouco etérea e bastante melancólica, se apresenta um pano de fundo mais do que adequado para a composição, do ponto de vista artístico, de um cinema fortemente sensorial.

Essa viagem pelos sentidos se sobrepõe a uma trama aparentemente simples, mas que por seus excessos, parece não se preocupar em ser melhor resolvida. Nesse mesmo sentido, uma família cindida e seu consequente núcleo falido balizando as agruras da adolescência do protagonista – fato que constitui o coração do enredo de Ponto Zero – foi algo do mesmo modo não trabalhado a contento pelo compatriota Ausência (2014), com quem o filme em questão dialoga por suas semelhanças.

Cercado por uma parentela problemática (o pai, radialista, é um cinico e apenas quer distância dos familiares; a mãe está enfastiada com o casamento em ruínas e as lides domésticas; a irmã é ausente), o adolescente do longa de Goulart está à beira de uma catarse emocional, evento que dá título à obra. Quando seu ato libertador, dotado de consequências inimagináveis, ocorre, ele se dá sob uma chuva torrencial incessante. Ali observamos uma confluência com o emprego da água nos filmes do malaio Tsai Ming-Liang (O Rio, O Sabor da Melancia, Cães Errantes) como elemento representante de uma força ou ainda como algo transformador, além – é óbvio – de seu natural significado de purificação.

É preciso, pois, mencionar que há espaço para muitos outros simbolismos ao longo do filme gaúcho. Alguns merecem ser destacados. Ao exibir o movimento do tráfego urbano ora de ponta-cabeça, ora de marcha a ré, fica evidente uma metáfora do desajuste entre o personagem central – o garoto Ênio (Sandro Aliprandini) – e o mundo que o cerca. Já o caráter de isolamento do mesmo em relação ao meio social e ao próprio ambiente familiar, se mostra enfatizado ao testemunharmos a poética e inspirada sequência na qual ele, como se fosse um ser invisível, pedala despercebido em meio aos cenários em que convive ou gostaria de conviver.

Entre erros e acertos, pretensões e resultados, o saldo de Ponto Zero é notoriamente positivo e não apenas pode, mas sobretudo deve, motivar os nossos realizadores da aldeia e da nação a explorar com maior intensidade as veredas de um cinema mais sensorial.