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Publicado por em jun 6, 2016 em Artigos |

Ponto Zero: entropia, implosão e renascimento – por Danilo Fantinel


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Durante o crescimento, o amadurecimento psicológico e seus reflexos comportamentais são tão marcantes quanto as mudanças físicas pelas quais o corpo humano passa. O que sentimos, pensamos e fazemos tem sempre um peso muito grande, assumindo dimensões ainda mais dramáticas durante a adolescência quando somos, sim, o centro do mundo. Do nosso mundo. Mundinho esse que vira de cabeça para baixo de um minuto para o outro com facilidade, que se despedaça e se reconstrói continuamente, seja seu dono alguém extrovertido ou um ser atormentado como Ênio (Sandro Aliprandini), personagem principal de Ponto Zero.

No filme de José Pedro Goulart, Ênio é uma ilha. Desvinculado de laços familiares acolhedores devido à dissolução do casamento dos pais, isolado na escola, perseguido pelos meninos do bairro, Ênio observa tudo e todos em um processo mudo de assimilação ininterrupta. Deslocado socialmente, o rapaz sofre uma somatória de agressões e rejeições que o levam a um ponto crítico, entrópico, implosivo. Um ponto zero onde tudo recomeça. Um reboot existencial marcado pela tragédia e tornado pedra fundamental de um futuro incerto, em reconstrução. Neste primeiro longa do cineasta, Ênio vive o pior de seus dias para sair dele modificado.

São justamente as coerções externas e as pressões internas na virada da puberdade para a adolescência que provocam esse ponto de restauração pelo qual Ênio rompe com o social que o oprime em favor do pessoal que o poderia libertar. Ele parte pela noite motivado por desejo sexual e autodeterminação. Porém, sua busca por si mesmo, por postura e voz no mundo, é pouco responsável. De seu grito de independência o que se ouve não é mais do que um pedido de socorro após o acontecimento de algo terrível e inesperado.

No drama existencial bem articulado em uma trama cotidiana desafiadora, o texto não é tão bem trabalhando quanto atuações, fotografia, efeitos visuais, trilha sonora e a montagem do filme, elementos que compensam o discurso nem sempre afinado. Assim, a inadequação social, o desconforto familiar e a introspecção essencial de Ênio, que encoberta uma intensa ebulição, ganham excelente representação audiovisual apesar de falas e diálogos que demandariam mais cuidado.

Em uma cidade que cresce, filmada com seus prédios em construção tão inacabados quanto é incompleto o próprio personagem principal, o garoto vê o trânsito andar para trás enquanto é achatado por um céu noturno transformado em avenida de ponta-cabeça. No firmamento, estrelas poéticas tornam-se faróis prosaicos em uma imaginação interna em processo de apagamento. Fantasma de si mesmo, o rapaz invisível passeia de bicicleta entre colegas e familiares sem ser notado. Todos esses são recursos formais que não apenas tornam visuais angústias sem forma definida como também colocam em cena, simultaneamente, Ênio criança e adolescente, cada qual testemunha do sofrimento alheio.

De fato, a infância é parte importante nesta história sobre a adolescência, pontuando-a eventualmente. Na cena que abre e fecha o filme, Ênio, ainda pequeno, é lançado pelo pai (Eucir de Souza) em uma piscina profunda como quem é jogado no mundo sem rede de proteção, algo belamente sugerido pela fusão de planos em que a água da piscina torna-se a do planeta Terra – água essa muito presente em várias sequencias do longa, como a da chuva torrencial na madrugada.

Assim, em Ponto Zero, a água se coloca como imagem simbólica de mudança e renovação. Elemento efêmero e transitório, deformador das essências (como a própria essência do ser, como aponta Gaston Bachelard), a água movimenta um simbolismo plural, que no caso do filme congrega uma metapoética de vida e morte. Das águas envolventes na piscina, similares ao acalento do ventre materno após o mergulho forçado pelo pai – e estimulantes de uma morte simbólica que afasta o rapaz permanentemente desta figura autoritária –, até as águas agitadas, perigosas e punitivas da tempestade, provocadoras de uma segunda morte que é em si redentora ao proporcionar o renascimento de Ênio em seu ponto zero, esta água cênica movimenta conteúdos imaginários cujos sentidos são mais antropologicamente vivenciados do que racionalmente explicados, o que nos leva a algo que todo cinéfilo sabe: para apreciar devidamente um filme, melhor do que ler sobre ele é vê-lo.