As possibilidades da animação como relato
por Gabriel Carneiro, integrante do Júri da Crítica do 46º Festival de Cinema de Gramado, especial para o site da ACCIRS
A cada ano, fica mais evidente o salto que a animação brasileira deu a partir do momento que se passou a incentivá-la em políticas culturais, ainda que timidamente. No último Festival de Cinema de Gramado, as animações representaram o corpo de trabalho mais interessante. Tanto o longa A cidade dos piratas (2018), de Otto Guerra, quanto os curtas-metragens Torre (2017), de Nádia Mangolini, e Guaxuma (2018), de Nara Normande, utilizam a técnica animação com bastante inventividade para imaginar narrativas documentais. Se Torre, considerado o melhor curta pela crítica e pelo público, aposta nas possibilidades do desenho para dar voz a personagens reais obscurecidos pela ditadura militar brasileira, Guaxuma, melhor curta pelo júri oficial, e A cidade dos piratas canalizam questões e dramas pessoais, seja de maneira afetuosa sobre a relação da diretora com uma amiga de infância, no primeiro caso, seja com bastante ironia e humor negro no segundo – um relato híbrido com as criações da cartunista Laerte e o próprio processo de Guerra em fazer o filme.
Torre, que também levou o prêmio de melhor direção de arte pelo júri oficial, conta o que aconteceu com Virgílio Gomes da Silva, o primeiro desaparecido político da ditadura militar brasileira, a partir da memória de seus quatro filhos. Todos eram crianças à época, mas com idades destoantes. Mangolini sabe trabalhar bem essas reminiscências, mudando o estilo dos traços e dando camadas visuais à medida que a memória do depoente é mais viva. Assim, o trecho dedicado a Isabel tem poucos detalhes nos desenhos, é em preto e branco, por exemplo. Os momentos de Gregório e Virgílio Filho ganham cores, minúcias, novas matizes de significado, pois suas lembranças também assim o são. Por isso é especialmente forte a opção da diretora para retratar a entrevista de Vlademir, o mais velho. Vemos apenas o rosto dele, em rotoscopia, falando. Tintas de cores quentes vibrantes vão aos poucos ocupando o quadro, são apagadas e novamente preenchidas, num processo cíclico e difuso, em que Mangolini explana a própria reconstrução da memória a partir de novos fatos, novas interpretações. Lembrar a história do pai é também lembrar a história da mãe, que foi presa, mas saiu e continua viva, e da própria infância; é borrar as fronteiras entre a história e a memória. A cineasta parece entender as possibilidades da animação como ferramenta estética e narrativa no retrato de algo tão delicado, respeitando acima de tudo os personagens e suas dores, sem expô-los desnecessariamente. Um retrato sobre o horror da ditadura militar como pouco se viu por aqui.
Guaxuma, por sua vez, parte das reminiscências da própria diretora. Normande cresceu na praia de Guaxuma, no Alagoas, ao lado da amiga Tayra. Da praia, a cineasta traz a estética do filme: as múltiplas possibilidades de se animar com areia. Assim como em Torre, a animação de Guaxuma permite ao espectador entrar no universo visual de algo tão abstrato como a própria memória. Normande ainda se ampara em fotografias do período, dispostas na praia e filmadas quase no mesmo ritmo das ondas que quebram ali. A narração em primeira pessoa, delicada e por vezes excessiva, busca dar poeticidade ao relato pessoal. É um reencontro saudoso com o passado da diretora, que se mudou de Guaxuma e se distanciou daquele local, daquelas pessoas.
Já o veterano Otto Guerra, que completou 40 anos da produtora Otto Desenhos Animados agora em 2018, fez com A cidade dos piratas seu filme mais livre e pessoal. Em seu quarto longa-metragem, Guerra, mais conhecido por adaptações de histórias em quadrinhos – Rocky & Hudson, os caubóis gays (1994), a partir de Adão Iturrusgarai, e Wood & Stock: sexo, orégano e rock’n’roll (2006), das tiras do Angeli – e da peça teatral Tangos & Tragédias, que deu origem a Até que a Sbórnia nos Separe (2018), teve que se adequar às transformações da Laerte e isso deu uma nova vida ao seu filme. A cidade dos piratas, originalmente, seria uma adaptação das tirinhas dos Piratas do Tietê.
No processo de transição para o gênero feminino, Laerte reavaliou seu trabalho anterior e de certa forma renegou alguns personagens, inclusive os Piratas. Tudo isso aconteceu enquanto o filme era feito. Guerra, que sempre teve uma verve bastante anárquica e contracultural, abraçou as dissonâncias da Laerte, incorporando ela, ele e a equipe dentro do filme. A narrativa dos Piratas passa, assim, a ser mesclada com outras histórias do universo laertiano, como o Minotauro, a Muriel e Deus, e com o próprio desenrolar do filme, que inclui toda a reformulação da trama, a inclusão de entrevistas com a Laerte, a saída da produtora Marta Machado, que, como outras figuras importantes da equipe, se demitiram do filme, entre outros. Guerra não tem medo de chocar quem fácil se choca – deve ter até chocado alguém do júri oficial, que apenas concedeu uma menção honrosa ao filme “não por unanimidade” – e de abraçar a estética do mau gosto e o humor grosseiro, visceral, despudorado, inclusive sem se poupar enquanto personagem decadente. Com isso, o cineasta criou um mosaico sobre o mundo atual, assolado por um discurso conservador, homofóbico e por vezes fascistas, em que a própria obra da Laerte é uma chave para um mundo mais igual.