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Publicado por em set 3, 2018 em Artigos, Destaque, Festival de Gramado |

As possibilidades da animação como relato

por Gabriel Carneiro, integrante do Júri da Crítica do 46º Festival de Cinema de Gramado, especial para o site da ACCIRS

A cada ano, fica mais evidente o salto que a animação brasileira deu a partir do momento que se passou a incentivá-la em políticas culturais, ainda que timidamente. No último Festival de Cinema de Gramado, as animações representaram o corpo de trabalho mais interessante. Tanto o longa A cidade dos piratas (2018), de Otto Guerra, quanto os curtas-metragens Torre (2017), de Nádia Mangolini, e Guaxuma (2018), de Nara Normande, utilizam a técnica animação com bastante inventividade para imaginar narrativas documentais. Se Torre, considerado o melhor curta pela crítica e pelo público, aposta nas possibilidades do desenho para dar voz a personagens reais obscurecidos pela ditadura militar brasileira, Guaxuma, melhor curta pelo júri oficial, e A cidade dos piratas canalizam questões e dramas pessoais, seja de maneira afetuosa sobre a relação da diretora com uma amiga de infância, no primeiro caso, seja com bastante ironia e humor negro no segundo – um relato híbrido com as criações da cartunista Laerte e o próprio processo de Guerra em fazer o filme.

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Torre, que também levou o prêmio de melhor direção de arte pelo júri oficial, conta o que aconteceu com Virgílio Gomes da Silva, o primeiro desaparecido político da ditadura militar brasileira, a partir da memória de seus quatro filhos. Todos eram crianças à época, mas com idades destoantes. Mangolini sabe trabalhar bem essas reminiscências, mudando o estilo dos traços e dando camadas visuais à medida que a memória do depoente é mais viva. Assim, o trecho dedicado a Isabel tem poucos detalhes nos desenhos, é em preto e branco, por exemplo. Os momentos de Gregório e Virgílio Filho ganham cores, minúcias, novas matizes de significado, pois suas lembranças também assim o são. Por isso é especialmente forte a opção da diretora para retratar a entrevista de Vlademir, o mais velho. Vemos apenas o rosto dele, em rotoscopia, falando. Tintas de cores quentes vibrantes vão aos poucos ocupando o quadro, são apagadas e novamente preenchidas, num processo cíclico e difuso, em que Mangolini explana a própria reconstrução da memória a partir de novos fatos, novas interpretações. Lembrar a história do pai é também lembrar a história da mãe, que foi presa, mas saiu e continua viva, e da própria infância; é borrar as fronteiras entre a história e a memória. A cineasta parece entender as possibilidades da animação como ferramenta estética e narrativa no retrato de algo tão delicado, respeitando acima de tudo os personagens e suas dores, sem expô-los desnecessariamente. Um retrato sobre o horror da ditadura militar como pouco se viu por aqui.

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Guaxuma, por sua vez, parte das reminiscências da própria diretora. Normande cresceu na praia de Guaxuma, no Alagoas, ao lado da amiga Tayra. Da praia, a cineasta traz a estética do filme: as múltiplas possibilidades de se animar com areia. Assim como em Torre, a animação de Guaxuma permite ao espectador entrar no universo visual de algo tão abstrato como a própria memória. Normande ainda se ampara em fotografias do período, dispostas na praia e filmadas quase no mesmo ritmo das ondas que quebram ali. A narração em primeira pessoa, delicada e por vezes excessiva, busca dar poeticidade ao relato pessoal. É um reencontro saudoso com o passado da diretora, que se mudou de Guaxuma e se distanciou daquele local, daquelas pessoas.

Já o veterano Otto Guerra, que completou 40 anos da produtora Otto Desenhos Animados agora em 2018, fez com A cidade dos piratas seu filme mais livre e pessoal. Em seu quarto longa-metragem, Guerra, mais conhecido por adaptações de histórias em quadrinhos – Rocky & Hudson, os caubóis gays (1994), a partir de Adão Iturrusgarai, e Wood & Stock: sexo, orégano e rock’n’roll (2006), das tiras do Angeli – e da peça teatral Tangos & Tragédias, que deu origem a Até que a Sbórnia nos Separe (2018), teve que se adequar às transformações da Laerte e isso deu uma nova vida ao seu filme. A cidade dos piratas, originalmente, seria uma adaptação das tirinhas dos Piratas do Tietê.

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No processo de transição para o gênero feminino, Laerte reavaliou seu trabalho anterior e de certa forma renegou alguns personagens, inclusive os Piratas. Tudo isso aconteceu enquanto o filme era feito. Guerra, que sempre teve uma verve bastante anárquica e contracultural, abraçou as dissonâncias da Laerte, incorporando ela, ele e a equipe dentro do filme. A narrativa dos Piratas passa, assim, a ser mesclada com outras histórias do universo laertiano, como o Minotauro, a Muriel e Deus, e com o próprio desenrolar do filme, que inclui toda a reformulação da trama, a inclusão de entrevistas com a Laerte, a saída da produtora Marta Machado, que, como outras figuras importantes da equipe, se demitiram do filme, entre outros. Guerra não tem medo de chocar quem fácil se choca – deve ter até chocado alguém do júri oficial, que apenas concedeu uma menção honrosa ao filme “não por unanimidade” – e de abraçar a estética do mau gosto e o humor grosseiro, visceral, despudorado, inclusive sem se poupar enquanto personagem decadente. Com isso, o cineasta criou um mosaico sobre o mundo atual, assolado por um discurso conservador, homofóbico e por vezes fascistas, em que a própria obra da Laerte é uma chave para um mundo mais igual.